Crianças e adolescentes devem aprender a ligar o “radarzinho do desconforto” para reconhecerem situações potencialmente abusivas. Esse radarzinho corresponde aos alertas que nosso corpo e mente emitem em vários momentos nos quais vivenciamos algo ruim ou perigoso. Acontece que esse radarzinho nem sempre vem calibrado e, assim, para que funcione adequadamente, ele precisa ser ajustado por adultos responsáveis por meio de ensinamentos preciosos para as crianças.

Em primeiro lugar, pais e professores atentos à necessidade de educarem sobre o “radarzinho do desconforto” têm que estar abertos para ACOLHER de verdade as experiências das crianças com quem estão em contato. Isso significa que vão investir tempo e energia para estabelecer o diálogo como algo cotidiano, concentrando-se em entender mais sobre o universo íntimo daquele pequeno. Do que ele gosta e não gosta, quais foram as novidades do seu dia, em que mudou desde o último mês, qual habilidade ele está empolgado em ter aprendido, como ele reage quando erra… É importante ouvir e validar a criança quanto a essas questões, pois isso permite que ela entenda que há um interesse genuíno do adulto em compreendê-la. Essas conversas também ajudam a criança a ficar mais ligada em si mesma, a reconhecer suas próprias emoções. Isso é essencial, o primeiro passo para fazer com que o “radarzinho do desconforto” trabalhe bem.

O segundo passo desse processo envolve estimular as crianças a assimilarem o que é esse tal de desconforto. O desconforto diz respeito àquelas sensações ruins que todo mundo sente em certas ocasiões difíceis. Cada um reage de um jeito diferente, mas, no geral, sentimentos como medo, raiva, tristeza e vergonha podem provocar sensações desagradáveis como vontade de chorar ou de sair correndo daquele lugar, coração acelerado, tremor, paralisia, dificuldade em saber o que dizer, tensão, etc. Assim, sempre que uma criança contar que passou por uma experiência negativa (por exemplo: bullying na escola), é interessante que o adulto a incentive a detalhar sobre como se sentiu naquela circunstância. 

Esse é um trabalho que pode ser difícil porque, em nossa cultura, é raro refletirmos sobre nossas emoções. Assim, quase sempre elas passam despercebidas, pois as pessoas não prestam atenção nas razões porque se sentem mal. Além disso, na maior parte das vezes, evitamos falar de nossos afetos negativos. Queremos esquecer os momentos desagradáveis ou detestamos explicitar nossos pontos fracos. Outras vezes, essas sensações são reprimidas, apontadas como “feias”, como quando lidamos com o ciúme ou a inveja. Há ainda, casos de adultos que repreendem a criança quando ela diz que, por exemplo, não gostou do abraço de um parente ou quando foi obrigada a usar uma roupa que pinica. 

Acontece que nenhuma dessas situações é interessante. Não devemos esconder ou dar bronca quanto a essas sensações ruins já que elas são parte natural da vida e de nossas rotinas. O mais adequado é pensar com a criança sobre as razões porque se sente daquela maneira. Quando ela aprende sobre como costuma experienciar os estresses cotidianos, ela se torna mais madura e fortalecida psicologicamente, bem como mais preparada para lidar com certos desafios do mundo. Isso significa que sempre que a criança é capaz de perceber que está mais triste ou irritada e o que lhe provoca esse tipo de sentimento, ela já ativou o seu “radarzinho do desconforto”. Nessa etapa, portanto, ela distingue quando está incomodada e o que lhe causa esse incômodo.

Mas, para que isso é importante, afinal? Por que devemos investir no “radarzinho do desconforto” de crianças e adolescentes? E mais, como é que isso pode ajudar na prevenção do abuso sexual?

A razão fundamental porque esses pontos são incentivados é porque eles dão aos nossos pequenos maior possibilidade de reação frente ao que não lhes parece adequado. Nessas circunstâncias, crianças e adolescentes podem desenvolver as melhores estratégias pessoais para resolverem seus problemas, para se encorajarem e comunicarem quando algo lhes desagradar. Por exemplo, se sentem dor de barriga quando precisam apresentar um trabalho na frente da turma, podem pedir à professora para ir ao banheiro antes de cumprirem a tarefa, ou ainda, podem ser matriculados em aulas de teatro, que ajudam a administrar melhor a timidez. Aqueles que não gostam quando a tia aperta a bochecha, podem educadamente avisá-la sobre como aquilo dói ou que já não é apropriado para sua idade. 

Em contextos abusivos, crianças e adolescentes sensíveis às próprias emoções negativas também têm vantagens porque podem perceber mais facilmente que há algo de errado na abordagem do adulto agressor, ainda que esse tipo de violência costume ser sutil. Situações sexualizadas costumam ser de difícil interpretação para os mais novos, já que o contexto erótico não faz parte do universo infantil. Nesse cenário, ainda que não entendam o que se passa, com o “radarzinho do desconforto” ligado, as crianças se mostram mais atentas de que aquilo não parece bom ou correto, que é inapropriado. Esse sinal de alerta amplia as possibilidades de se afastarem da cena, reclamarem das ações do abusador ou para avisarem que não gostam daquele contato, demonstrando sua oposição à violência e, muitas vezes, conseguindo se esquivar dela. É claro que essa não é uma responsabilidade ou obrigação de crianças e adolescentes, porém, é uma valiosa forma de proteção adicional com que contam.

Liliane Domingos Martins