Quando o assunto são dados estatísticos sobre prevalência e características da violência sexual no Brasil, nos deparamos com muitas dificuldades que culminam em um resultado: a imprecisão das informações oficiais.
Segundo os dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, que compilam informações relacionadas à violência no Brasil obtidas por meio das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social, a violência é um problema social grave em nosso país. Esse quadro mostra sua face ainda mais nefasta quando olhamos para os dados específicos da violência sexual.
Em termos de números absolutos, 66.348 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados em delegacias de polícia brasileiras apenas no ano de 2019. Isso significa uma marca de 1 estupro a cada 8 minutos no país.
Apesar de estarrecedor, esse número se refere apenas aos casos de estupro que foram registrados em órgãos de segurança pública e sabemos que a maioria das situações de violência sexual não passam por esse tipo de registro. A essa situação de registros incompletos ou apenas de parte do que acontece na realidade, usamos a expressão “subnotificação” dos casos.
Estimativas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontam que apenas 10% dos casos de violência sexual no Brasil são denunciados. Ou seja, cerca de 90% não ganham qualquer tipo de documentação e não aparecem nas estatísticas oficiais, ficando restritos a uma experiência individual, geralmente traumática, com grande impacto e sofrimento para a vítima e outras pessoas próximas.
São várias as explicações para essa subnotificação no Brasil e uma delas está vinculada justamente ao descrédito da população com relação aos órgãos de polícia e justiça. A não confiança nas instituições brasileiras é um fator importante, mas não explica o problema. Estudos indicam que nos EUA, onde a confiança da população nas instituições é significativamente maior que no Brasil, o problema da subnotificação com relação aos crimes sexuais também existe. Estima-se que lá apenas 23% dos casos de violência sexual são denunciados.
Um outro fator que contribui pra subnotificação dos casos diz respeito a uma questão conceitual, tal seja, os diferentes entendimentos da sociedade sobre o que caracteriza um ato como violência sexual ou não. Assim, aquilo que a própria vítima, sua família, os atores da rede de proteção, dentre outros, entendem como sendo uma situação de violência sexual e que, portanto, deve ser denunciada, pode variar. Comumente as pessoas acreditam que se refere apenas aos atos com componente sexual que envolvem agressão física (uso de força) e penetração. Esse entendimento limitado não compreende a totalidade da realidade da violência sexual e faz com que muitas vezes não sejam denunciadas situações em que não houve uso de força física, mas de aliciamento, por exemplo, ou aqueles atos em que o abuso acontece de forma a não deixar qualquer tipo de marca (lesão ou hematoma) corporal.
Junto a isso, as mudanças que tivemos na legislação ao longo das últimas décadas sobre a tipificação dos crimes relacionados à violência sexual também contribuem para a subnotificação e provocam distorções dos dados. Apesar das alterações legais terem acontecido há certo tempo, existem diferenças regionais significativas no ritmo de assimilação das mudanças. Assim, enquanto alguns Estados incorporaram o conceito mais abrangente de estupro, por exemplo, outros ainda não o fizeram.
Além disso, a falta de informação e a dificuldade de acesso aos órgãos de proteção e segurança pública, principalmente em se tratando da população mais vulnerável, também é um fator que contribui para a subnotificação. Devemos ainda considerar que a dimensão continental do país e as desigualdades regionais fazem com que alguns Estados tenham uma estrutura que facilite a denúncia enquanto outros dificultam ou praticamente inviabilizam esse tipo de ação por parte da população em geral.
Mesmo com todos esses fatores citados, há um elemento principal na base da subnotificação da violência sexual: a própria natureza da violência. Ou seja, trata-se de um tipo de fenômeno que, por suas características, tem forte impacto emocional na vítima (e muitas vezes naqueles ao seu redor). Para além do sofrimento que qualquer tipo de violência provoca, medo, vergonha e culpa são afetos comumente mobilizados em pessoas que passaram por vitimação sexual. Medo do agressor e do julgamento social, vergonha de expor questões que de foro íntimo/privado que envolvem a situação, culpa pode ter sofrido a violência, dependência financeira e emocional do agressor, temor das consequências da denúncia etc. são questões facilmente mobilizadas nas vítimas.
Por mais controverso que pareça, a violência sexual é um tipo de crime em que, comumente, a vítima é tão ou mais julgada socialmente do que o próprio agressor. A crueldade desse tipo de lógica faz com que muitas vezes a vítima opte por se calar. Uma sociedade machista, adultocêntrica e conservadora como a nossa, muitas vezes busca encontrar explicações para a situação de violência que resvalam numa suposta responsabilidade da própria vítima, especialmente se ela for jovem e mulher, e se o agressor sustentar boa reputação social.
Assim, as informações oficiais de casos de violência sexual no Brasil, apesar de significativos, não refletem a realidade. Trata-se apenas da pequena ponta visível de um iceberg em que não conseguimos visualizar a dimensão de sua parte submersa.
Silvia Pereira Guimarães