27 de julho de 2022Comments are off for this post.

A importância do boletim de ocorrência

No mundo inteiro, a violência sexual contra crianças e adolescentes é um crime subnotificado. Apesar dos dados sobre essas ocorrências assustarem, estima-se que representem apenas cerca de 10% do total de casos. Isso se dá, em partes, porque é bastante difícil para as vítimas terem coragem de falar sobre episódios abusivos que sofreram, de modo que a revelação muitas vezes não ocorre. Além disso, é frequente que as famílias optem por não registrar a denúncia quando o crime vem à tona, o que representa um importante problema.

Ao saberem que uma criança foi molestada, é comum que pais e mães decidam que não vão realizar um boletim de ocorrência por razões diversas. A ideia quase sempre é de evitar o desgaste do filho e de pessoas próximas com todos os trâmites do processo de investigação e com a necessidade constante de relembrar a violência nesse percurso. Nessas circunstâncias, acreditam que o sofrimento será menor se forem poupados da participação em depoimentos, oitivas e audiências, e que a criança pode até esquecer a experiência abusiva com algum tempo. Acreditam ainda que, com maior vigilância, a criança está a salvo de novos abusos por parte do agressor. Um equívoco, já que não é possível manter os filhos sob o olhar durante todo o tempo e porque o ofensor continua representando ameaça para aquela e outras crianças.

Em verdade, o silenciamento sobre a violência sexual é um desafio que precisa ser superado e a efetivação de denúncias é essencial para o levantamento do número de casos, das regiões em que mais acontecem, do perfil das crianças e adolescentes que sofrem com o problema, etc. São essas informações que permitem que os governantes ponderem sobre a maneira como os recursos serão destinados a cada comunidade e as ações mais interessantes para cada uma delas. 

Por exemplo, em regiões nas quais são mais elevados os índices de denúncia, é preciso que os profissionais de serviços de segurança e saúde estejam muito bem preparados para acolher as vítimas. Além disso, visando minimizar os riscos de novos abusos, pode-se pensar em programas de prevenção nas escolas, focando na faixa etária em que são maiores os números da violência. Finalmente, pode-se buscar entender sobre as razões porque as denúncias são maiores ali e replicar seu modelo para outras localidades, em que crianças e adolescentes molestados ainda mantêm a ocorrência em segredo.

Uma outra razão porque a denúncia é tão necessária envolve a ideia de responsabilização do agressor. A observância de que inúmeros casos de abuso acabam impunes faz com que muitos ofensores se sintam encorajados a iniciarem ou a manterem tais atos criminosos. Além disso, é comum que o mesmo abusador repita o crime quando percebe que a situação é deixada sem queixa.

Para as vítimas, por sua vez, a denúncia tende a desempenhar um duplo papel positivo. Em primeiro lugar, porque a notificação do caso costuma implicar em mais segurança para ela em relação àquele adulto que a violentou, de que não há mais razão para medo ou culpa, e de que estão sendo providenciados os mecanismos para a devida punição dele pelos atos contra ela. Em segundo lugar, a denúncia é importante para a vítima porque demonstra que acreditaram em sua palavra, que ela está cercada por outros adultos responsáveis e de confiança, que tomam providências quando a veem exposta a situações tão complicadas. 

Assim, diante da suspeita ou da comprovação de um episódio de abuso sexual contra a criança ou adolescente, recomenda-se o boletim de ocorrência. O registro do fato pode ser feito no Conselho Tutelar, delegacias, Ministério Público, Juizado da Infância e da Juventude ou mesmo por telefone, através do Disque 100.

Liliane Borges Domingos

20 de julho de 2022Comments are off for this post.

Só especialistas podem atender vítimas de abuso?

O abuso sexual é um tema complexo, que gera angústia e desconforto. Por isso, muitos profissionais se sentem inaptos para lidar com esse tema, acreditando que são incapazes de atender vítimas de violência sexual. Entretanto, se você é um profissional da área de saúde, muito possivelmente já recebeu em seu consultório algumas delas.

 Infelizmente, a violência sexual é muito presente em nossa sociedade e é bem improvável que esse problema não tenha batido à sua porta. Então, se você acha que nunca atendeu uma vítima de abuso, provavelmente é porque não soube identificar os sinais que seu paciente trouxe.

Além disso, também pode ter acontecido de um paciente chegar diretamente com essa queixa, sendo que você explicou não ser sua área e encaminhou a caso.

Sabemos que há profissionais dedicados a pesquisar profundamente o tema do abuso sexual, especialmente quando trabalham constantemente com vítimas ou agressores. De todo modo, ainda que não seja esse o seu caso, se você recebe pessoas em tratamento, principalmente se lida com público infantil, você precisa adquirir algumas informações sobre esse assunto, para que possa conduzir adequadamente os tratamentos e melhor orientar pacientes e familiares.

Alguns profissionais se apavoram quando recebem casos de abuso e se apressam em pesquisar para onde devem encaminhar aquele paciente. Sobre isso, é preciso que você tenha clareza do seu papel diante da situação e sobre as condutas que lhe cabem ou não. Explico:

Vejamos o seguinte contexto: um psicólogo que atende crianças e recebe um paciente vindo por suspeita de abuso. Será que ele deve encaminhar essa criança para um terapeuta especialista em violência sexual? Não necessariamente.

Claro que o psicólogo pode ter ressalvas pessoais com relação ao tema e melhor faria em repassar o caso para alguém que se sinta mais confortável em tratar a criança. Do contrário, tal profissional pode receber esse paciente lidando com o sofrimento e as consequências da vitimização como resultado de um conflito como qualquer outro. Nesse sentido, a mesma técnica psicoterapêutica empregada para atender aos outros casos pode ser usada com as vítimas de abuso.

Por outro lado, é preciso que esse psicólogo tenha conhecimento sobre o fenômeno da violência sexual, para que mantenha sua escuta clínica livre de crenças ou preconceitos do senso comum, que podem atrapalhar no acolhimento do paciente e na condução do tratamento. Saber sobre como se dá o processo de aliciamento e a síndrome do segredo e da adição, estar avisado da possibilidade de retratação, ter noções sobre sugestionabilidade e de como se estruturam as falsas memórias, por exemplo, possibilita o sucesso do processo psicoterapêutico e evita a revitimização.

Outro ponto importante para esse profissional é distinguir sua atuação como psicólogo clínico do papel de outros profissionais que podem vir a atender a criança, como psicólogos ligados à assistência social ou à área da justiça. Isso é fundamental tanto para evitar mal entendidos, quanto para lidar de maneira genuína e adequada com as expectativas de pais e familiares da criança. A sobreposição de atribuições é extremamente danosa ao acompanhamento adequado da vítima e pode, inclusive, ser prejudicial ao esclarecimento da denúncia e à responsabilização do possível agressor.

Juliana Borges Naves

13 de julho de 2022Comments are off for this post.

Sexting e nudes

Os avanços tecnológicos têm implicações diretas na nossa forma de viver e de estar no mundo. Do mesmo modo, a ampliação da vida digital tem impactado diretamente o modo como nos relacionamos com as outras pessoas. Esses impactos alcançam também os jovens e a maneira como vivenciaram os diversos aspectos da vida em desenvolvimento, inclusive a sexualidade. 

Nascidos em uma época em que a vida on-line e a internet fazem parte do cotidiano, os adolescentes da atualidade transitam facilmente pelos ambientes digitais e demonstram grande habilidade na utilização de recursos e ferramentas muitas vezes consideradas muito complexas pelos adultos com menos fluência nesse universo. 

Acostumados desde muito pequenos a lidar com a tecnologia, os jovens vivenciam como algo natural a exposição advinda das redes sociais e do compartilhamento de aspectos da vida privada por meio de fotos e vídeos. A exibição pública da vida cotidiana faz parte da lógica de funcionamento das redes sociais, que exalta e valoriza a exposição pessoal, e é nesse contexto que surgem os nudes e os sextings produzidos pelos jovens. 

Nude é uma palavra que ficou popularizada na expressão “manda nudes”, que se refere ao pedido para que a pessoa envie fotos pessoais sem roupas. Já a palavra sexting é uma junção da palavra sex (sexo) + texting (torpedo), e que hoje faz referência às trocas de mensagens de caráter erótico e sensual por aplicativos de mensagens, muitas vezes contendo vídeos e fotos. 

Nesse aspecto, a diferença geracional, naturalmente observada entre pais e filhos, torna-se ainda mais evidente. De modo geral, os pais percebem os nudes e o sexting como uma superexposição perigosa, constrangedora e de difícil aceitação. Por outro lado, para muitos adolescentes, os nudes são apenas mais uma forma de se relacionar com o outro ou um modo de afirmação pessoal. Muitas vezes, para esse jovem, um nude é entendido como uma forma de reconhecimento entre os pares, de valorização do corpo, de autoafirmação, de experimentação de prazer e autoconfiança que dificilmente é compreendida pelos mais velhos. Assim, os nudes e sextins se configuram como os antigos jogos sexuais da adolescência, mas dentro do universo da internet. 

Independentemente do significado que o nude adquire entre os diferentes grupos de adolescentes, essa prática guarda um risco que frequentemente é calculado apenas pelos mais velhos: o perigo da divulgação não autorizada deste conteúdo ou a viralização (perda do controle desse material) na internet. Tal situação, como já visto em inúmeros casos reais, produz um ciclo de estigmatização e culpabilização que gera grande sofrimento aos envolvidos. 

Vale registrar ainda que, ainda que consentidos, os nudes produzidos por adolescentes são materiais que não podem circular na internet. O envio, posse ou produção de fotos de adolescentes nus podem caracterizar distribuição, posse e produção de pornografia infantil, o que configura crime.

Por esse motivo, é importante distinguir a habilidade instrumental dos jovens com o uso das tecnologias e da internet, da capacidade de uso crítico e responsável desses recursos. As extensas horas navegando na internet não significam maturidade e capacidade de cálculo dos impactos que as ações praticadas no mundo virtual têm na vida real de cada um. 

Assim, meninos e meninas, ainda que muito habilitados para o uso de ferramentas digitais, precisam ser educados para fazer boas escolhas on-line e desfrutar de forma ética e responsável das oportunidades advindas da tecnologia.  

Renata Pereira Guimarães

7 de julho de 2022Comments are off for this post.

A culpabilização feminina

De acordo com o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213 (na redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009), estupro é: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Apesar da clareza que o conceito de estupro assume na legislação brasileira, na prática, a sociedade tende a relativizar a vitimização sexual da mulher a depender do contexto do crime e dos envolvidos. Isso quer dizer que a violência sexual, na prática, é tratada como um valor relativo, e não absoluto, dependendo das condições em que ocorre. Nota-se, assim, que existe uma distância entre aquilo que se vê no texto da lei e aquilo que se observa na sociedade - e consequentemente, na aplicação da lei na vida real - onde fatores sócio históricos e culturais interferem na percepção dos fatos e em seu desenrolar. 

A legislação brasileira sobre crimes sexuais é rica, positiva e prevê punição que será aumentada condicionada a agravantes (como os casos de estupro coletivo; contra vulneráveis; praticado por ascendente, padrasto, tio, etc.; quando resulta em gravidez; dentre outros). Além disso, a lei é clara em apontar a existência de crime quando a vítima não é capaz de dar consentimento ao ato sexual, como é o caso de uma vítima bêbada, por exemplo. Do ponto de vista legislativo, a ausência de consentimento é o ponto que possibilita a aplicação da punição ao agente que praticou a conduta criminosa. 

A violência sexual é um tipo de crime que, em termos psicológicos, produz marcas que colocam a vítima em condição de grande fragilidade, com sentimento de impotência, medo e vergonha. No Brasil, essas marcas são ainda acrescidas de um viés cultural machista e conservador que tende a olhar para a violência buscando causas e responsabilidades para além do próprio comportamento do agressor. 

Nessa lógica cultural misógina, é comum o discurso de responsabilização da vítima pela própria violência sexual sofrida, de modo que surgem construções que responsabilizam o comportamento da vítima, as roupas que usava, o fato de estar na rua/bar/festa/viagem, ter usado alguma bebida alcoólica etc. Em outras palavras, nosso país carrega ao longo da história uma carga conservadora sobre a mulher e a sexualidade feminina. É esse viés cultural e sexista que comumente produz uma inversão de papéis onde a vítima é apontada como a responsável pela violência que sofreu. 

Denunciar os danos produzidos por essa tendência machista e conservadora da nossa sociedade é um grande desafio pois, comumente, essa discussão é apontada como “exagero” ou “mimimi”. Isso acontece porque a postura de diminuição e controle sobre a mulher é algo tão naturalizado no cotidiano, que ganha “ares de paisagem”. O ideal da mulher “bela, recatada e do lar” encontra-se diluído na sociedade como um todo, impregnado nas instituições, inclusive nos órgãos de investigação e de justiça. Trata-se de um padrão cultural ancorado em preconceitos e estereótipos de gênero, que fundamenta argumentos de culpabilização da vítima. 

É nesse contexto que surgem os discursos que sugerem (às vezes de forma sutil, outras vezes, de forma muito direta) que a vítima provocou, mereceu ou consentiu a violência, em razão de seus hábitos sociais considerados “perigosos”. Tem-se, assim, uma inversão completa da lógica agressor-vítima, de modo que o foco muitas vezes fica localizado na vítima, que tem que explicar o que estava fazendo naquele local, como estava vestida, o que havia bebido, em quais companhias estava etc, inclusive dentro do próprio sistema de justiça. 

Ao que parece, o antigo bordão “prendam suas cabras que o meu cabrito está solto” ainda hoje traduz nossa organização social que impõe o controle da sexualidade feminina e um padrão comportamental de reclusão, frente a uma postura de liberdade e imposição masculina. Observar a naturalidade com que bordões como esse são utilizados sem nenhum questionamento indicam a urgente necessidade de discussões e enfrentamentos que apontem para a igualdade de gênero e para a aceitação da liberdade feminina, sem a imposição de regramentos e controles sobre o corpo da mulher. 

Silvia Pereira Guimarães

25 de maio de 2022Comments are off for this post.

Só especialistas podem atender vítimas de abuso?

O abuso sexual é um tema complexo, que gera angústia e desconforto. Por isso, muitos profissionais se sentem inaptos para lidar com esse tema, acreditando que são incapazes de atender vítimas de violência sexual. Entretanto, se você é um profissional da área de saúde, muito possivelmente já recebeu em seu consultório algumas delas.

 Infelizmente, a violência sexual é muito presente em nossa sociedade e é bem improvável que esse problema não tenha batido à sua porta. Então, se você acha que nunca atendeu uma vítima de abuso, provavelmente é porque não soube identificar os sinais que seu paciente trouxe.

Além disso, também pode ter acontecido de um paciente chegar diretamente com essa queixa, sendo que você explicou não ser sua área e encaminhou a caso.

Sabemos que há profissionais dedicados a pesquisar profundamente o tema do abuso sexual, especialmente quando trabalham constantemente com vítimas ou agressores. De todo modo, ainda que não seja esse o seu caso, se você recebe pessoas em tratamento, principalmente se lida com público infantil, você precisa adquirir algumas informações sobre esse assunto, para que possa conduzir adequadamente os tratamentos e melhor orientar pacientes e familiares.

Alguns profissionais se apavoram quando recebem casos de abuso e se apressam em pesquisar para onde devem encaminhar aquele paciente. Sobre isso, é preciso que você tenha clareza do seu papel diante da situação e sobre as condutas que lhe cabem ou não. Explico:

Vejamos o seguinte contexto: um psicólogo que atende crianças e recebe um paciente vindo por suspeita de abuso. Será que ele deve encaminhar essa criança para um terapeuta especialista em violência sexual? Não necessariamente.

Claro que o psicólogo pode ter ressalvas pessoais com relação ao tema e melhor faria em repassar o caso para alguém que se sinta mais confortável em tratar a criança. Do contrário, tal profissional pode receber esse paciente lidando com o sofrimento e as consequências da vitimização como resultado de um conflito como qualquer outro. Nesse sentido, a mesma técnica psicoterapêutica empregada para atender aos outros casos pode ser usada com as vítimas de abuso.

Por outro lado, é preciso que esse psicólogo tenha conhecimento sobre o fenômeno da violência sexual, para que mantenha sua escuta clínica livre de crenças ou preconceitos do senso comum, que podem atrapalhar no acolhimento do paciente e na condução do tratamento. Saber sobre como se dá o processo de aliciamento e a síndrome do segredo e da adição, estar avisado da possibilidade de retratação, ter noções sobre sugestionabilidade e de como se estruturam as falsas memórias, por exemplo, possibilita o sucesso do processo psicoterapêutico e evita a revitimização.

Outro ponto importante para esse profissional é distinguir sua atuação como psicólogo clínico do papel de outros profissionais que podem vir a atender a criança, como psicólogos ligados à assistência social ou à área da justiça. Isso é fundamental tanto para evitar mal entendidos, quanto para lidar de maneira genuína e adequada com as expectativas de pais e familiares da criança. A sobreposição de atribuições é extremamente danosa ao acompanhamento adequado da vítima e pode, inclusive, ser prejudicial ao esclarecimento da denúncia e à responsabilização do possível agressor.

Silvia Pereira Guimarães

18 de maio de 2022Comments are off for this post.

Maio Laranja

Maio é um mês importante, em que o Brasil enfoca o combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Nesse período, há um maior esforço para a sensibilização da sociedade contra esses crimes tão perversos, bem como para se discutir e reavaliar as políticas públicas referentes à causa. A ideia por trás dessas ações é de viabilizar alternativas que garantam melhores condições de proteção a todas as crianças e adolescentes, conforme é preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A campanha já se estende há mais de duas décadas. A cor laranja foi escolhida porque é vibrante e pretende transmitir a expectativa positiva de um futuro livre dos problemas em questão. Além disso, o laranja já era adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em suas mobilizações contra a violência de meninas e mulheres. Nesse caso, mesmo que os crimes sexuais não vitimizem apenas pessoas do sexo feminino, reconhe-se que estatisticamente são elas que mais sofrem com tais adversidades. 

Durante todo o mês, várias iniciativas de órgãos diversos procuram difundir sobre estratégias que podem ser adotadas para se evitar a violência sexual, além de informações com embasamento científico para que sejam superados mitos comuns sobre o abuso e técnicas úteis aos profissionais de distintos campos que lidam com crianças e adolescentes. Esse é, portanto, um período rico para se abastecer com conteúdo confiável sobre o assunto, algo que, por sua vez, permite levar mais educação e segurança aos nossos infantes.

De maneira mais específica, o dia 18 de maio é aquele em que se concentra a maior parte das atividades de luta contra a violência sexual e essa data não foi escolhida à toa. Ela visa resgatar um episódio triste da história do nosso país e tem finalidade memorial. O 18 de maio lembra a morte da menina Araceli Cabrera Sánchez Crespo, que foi sequestrada, estuprada, torturada e assassinada no ano de 1973 no estado do Espírito Santo. O horror que cerca esse acontecimento segue impactando e representa exatamente aquilo que queremos evitar para nossas crianças e adolescentes. 

Apesar de figurar como uma recordação difícil, o legado de Araceli está nessa causa, na busca ativa pela conscientização de todos sobre a necessidade de estarmos mais atentos às necessidades dos mais novos, garantindo a eles as melhores condições de desenvolvimento, a salvo de desrespeitos, omissões, negligência e de qualquer tipo de violência.

Liliane Domingos Martins

11 de maio de 2022Comments are off for this post.

Por que confundem abusadores e pedófilos?

Nem todo pedófilo é abusador e nem todo abusador é pedófilo. Sempre que essa frase é dita e que se busca explicar, à luz da Psicologia, sobre as diferenças entre as figuras do abusador sexual em relação à do pedófilo, comentários reativos e emocionados, por vezes ofensivos e raivosos, se fazem presentes. Por sua vez, basta uma análise menos apaixonada e uma leitura cuidadosa do conteúdo para se compreender as razões dessa distinção.

Para esclarecimento, o pedófilo é um adulto que tem desejo sexual por crianças, ou seja, aquele que se sente estimulado e excitado por meninos e meninas. É evidente que esse tipo de preferência sexual não é socialmente aceita, porém, boa parte das pessoas com transtorno pedofílico têm consciência disso, procura controlar seus impulsos e não chega a se envolver sexualmente com crianças. Nesses casos, portanto, os pedófilos não se tornam abusadores. 

Isso entendido, podemos pensar sobre quem são os abusadores. Os abusadores são aqueles que efetivamente se envolvem sexualmente com crianças, seja por meio da incitação sexual delas, de toques indevidos, de penetração ou qualquer outra forma de contato erotizado e precoce à idade. Alguns abusadores são pedófilos, à medida que são sexualmente atraídos por crianças e não refreiam suas vontades: seduzem e aliciam infantes para viverem com eles as suas preferências íntimas. Outra parte dos abusadores não têm necessariamente qualquer interesse sexual por crianças, mas abusam por outras razões: porque encontraram uma vítima desprotegida, sem atenção de outros adultos; porque se sentem poderosos em subjugar alguém mais fraco; por vingança de algum parente daquela criança ou pela desobediência dela; etc.

Os equívocos em relação aos dois termos surgem especialmente em função do que é difundido pela mídia. No geral, as reportagens sobre violência sexual de crianças e adolescentes colocam o pedófilo e o abusador como uma coisa só. Não bastasse a unificação desses conceitos em desconsideração à ciência da área, a mídia também tem ganhos em incitar o ânimo das pessoas através da criação de vilões e de espetáculos que atraem audiência, o que implica em comentários inflamados sobre esse assunto. 

Em meio a toda essa emocionalidade tão marcante é preciso que a racionalidade também ganhe espaço. A emoção é de grande utilidade para mover as pessoas a cobrarem pelos direitos de crianças e adolescentes, para se exigir que os crimes cometidos contra elas tenham a devida responsabilização. Por sua vez, a consideração racional acerca da distinção entre o pedófilo e o abusador permite compreender que não há nisso um propósito de defesa sobre qualquer um desses atores e que o pressuposto de tal categorização é unicamente didático.  

A devida distinção entre o pedófilo e o abusador existe porque as pessoas não podem ser criminalizadas tão somente por seus desejos, pelo que se passa na mente delas. Em verdade, somente os atos podem ser criminalizados, o que significa que apenas aqueles que realmente agrediram sexualmente uma criança, ou seja, os abusadores, serão devidamente responsabilizados por seus atos.

Esses esclarecimentos representam um compromisso do Instituto Alexis, que procura desmistificar confusões que as pessoas costumam ter sobre a violência sexual de crianças e adolescentes, já que essas muitas vezes destoam dos resultados dos estudos e pesquisas na área.  

Liliane Domingos Martins

4 de maio de 2022Comments are off for this post.

O problema das estatísticas de violência sexual no Brasil

Quando o assunto são dados estatísticos sobre prevalência e características da violência sexual no Brasil, nos deparamos com muitas dificuldades que culminam em um resultado: a imprecisão das informações oficiais. 

Segundo os dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, que compilam informações relacionadas à violência no Brasil obtidas por meio das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social, a violência é um problema social grave em nosso país. Esse quadro mostra sua face ainda mais nefasta quando olhamos para os dados específicos da violência sexual. 

Em termos de números absolutos, 66.348 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados em delegacias de polícia brasileiras apenas no ano de 2019. Isso significa uma marca de 1 estupro a cada 8 minutos no país. 

Apesar de estarrecedor, esse número se refere apenas aos casos de estupro que foram registrados em órgãos de segurança pública e sabemos que a maioria das situações de violência sexual não passam por esse tipo de registro. A essa situação de registros incompletos ou apenas de parte do que acontece na realidade, usamos a expressão “subnotificação” dos casos.

Estimativas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontam que apenas 10% dos casos de violência sexual no Brasil são denunciados. Ou seja, cerca de 90% não ganham qualquer tipo de documentação e não aparecem nas estatísticas oficiais, ficando restritos a uma experiência individual, geralmente traumática, com grande impacto e sofrimento para a vítima e outras pessoas próximas. 

São várias as explicações para essa subnotificação no Brasil e uma delas está vinculada justamente ao descrédito da população com relação aos órgãos de polícia e justiça. A não confiança nas instituições brasileiras é um fator importante, mas não explica o problema. Estudos indicam que nos EUA, onde a confiança da população nas instituições é significativamente maior que no Brasil, o problema da subnotificação com relação aos crimes sexuais também existe. Estima-se que lá apenas 23% dos casos de violência sexual são denunciados. 

Um outro fator que contribui pra subnotificação dos casos diz respeito a uma questão conceitual, tal seja, os diferentes entendimentos da sociedade sobre o que caracteriza um ato como violência sexual ou não. Assim, aquilo que a própria vítima, sua família, os atores da rede de proteção, dentre outros, entendem como sendo uma situação de violência sexual e que, portanto, deve ser denunciada, pode variar. Comumente as pessoas acreditam que se refere apenas aos atos com componente sexual que envolvem agressão física (uso de força) e penetração. Esse entendimento limitado não compreende a totalidade da realidade da violência sexual e faz com que muitas vezes não sejam denunciadas situações em que não houve uso de força física, mas de aliciamento, por exemplo, ou aqueles atos em que o abuso acontece de forma a não deixar qualquer tipo de marca (lesão ou hematoma) corporal. 

Junto a isso, as mudanças que tivemos na legislação ao longo das últimas décadas sobre a tipificação dos crimes relacionados à violência sexual também contribuem para a subnotificação e provocam distorções dos dados. Apesar das alterações legais terem acontecido há certo tempo, existem diferenças regionais significativas no ritmo de assimilação das mudanças. Assim, enquanto alguns Estados incorporaram o conceito mais abrangente de estupro, por exemplo, outros ainda não o fizeram.

Além disso, a falta de informação e a dificuldade de acesso aos órgãos de proteção e segurança pública, principalmente em se tratando da população mais vulnerável, também é um fator que contribui para a subnotificação. Devemos ainda considerar que a dimensão continental do país e as desigualdades regionais fazem com que alguns Estados tenham uma estrutura que facilite a denúncia enquanto outros dificultam ou praticamente inviabilizam esse tipo de ação por parte da população em geral.  

Mesmo com todos esses fatores citados, há um elemento principal na base da subnotificação da violência sexual: a própria natureza da violência. Ou seja, trata-se de um tipo de fenômeno que, por suas características, tem forte impacto emocional na vítima (e muitas vezes naqueles ao seu redor). Para além do sofrimento que qualquer tipo de violência provoca, medo, vergonha e culpa são afetos comumente mobilizados em pessoas que passaram por vitimação sexual. Medo do agressor e do julgamento social, vergonha de expor questões que de foro íntimo/privado que envolvem a situação, culpa pode ter sofrido a violência, dependência financeira e emocional do agressor, temor das consequências da denúncia etc. são questões facilmente mobilizadas nas vítimas.  

Por mais controverso que pareça, a violência sexual é um tipo de crime em que, comumente, a vítima é tão ou mais julgada socialmente do que o próprio agressor. A crueldade desse tipo de lógica faz com que muitas vezes a vítima opte por se calar. Uma sociedade machista, adultocêntrica e conservadora como a nossa, muitas vezes busca encontrar explicações para a situação de violência que resvalam numa suposta responsabilidade da própria vítima, especialmente se ela for jovem e mulher, e se o agressor sustentar boa reputação social. 

Assim, as informações oficiais de casos de violência sexual no Brasil, apesar de significativos, não refletem a realidade. Trata-se apenas da pequena ponta visível de um iceberg em que não conseguimos visualizar a dimensão de sua parte submersa. 

Silvia Pereira Guimarães

27 de abril de 2022Comments are off for this post.

Consentimento Afirmativo

A noção de consentimento está associada com a ideia de permissão, de autorização. Envolve a compreensão que uma pessoa tem de uma situação específica para que possa determinar se aceita participar dela ou não. Assim, quando se fala em qualquer tipo de prática sexual, é imprescindível que todos os envolvidos manifestem seu consentimento, ou seja, que deixem claro se estão à vontade e se querem mesmo estar inseridos em tais interações.

Acontece que para menores de 14 anos, a lei não admite que consintam com nenhum tipo de ato sexual. Entende-se que pessoas nessa faixa etária não têm maturidade física ou psicológica para dimensionar as diversas questões envolvidas com o assunto, além do que, tendem a estar submetidas aos mais velhos de diversas maneiras, de forma que antecipa-se sobre a incapacidade delas em terem franca consciência sobre quaisquer atividades dessa ordem e, portanto, de poderem escolher participar delas. Isto considerado, resulta que todo ato ou jogo de teor erótico com indivíduos nessa faixa etária é considerado abuso. 

No caso de maiores de 14 anos, apesar de se pressupor que as pessoas já têm condições de deliberar sobre inserirem-se ou não em atos sexuais, recentemente foram inaugurados debates sobre a importância do que se chama de consentimento afirmativo. 

O conceito de consentimento afirmativo abrange a ideia de que toda interação sexual deve ser explicitamente autorizada por todos os envolvidos. O que muda aqui em relação à noção tradicional desse conceito é que, no caso do consentimento afirmativo, busca-se um “sim” evidente e inequívoco por parte de cada pessoa.

A educação sexual de adolescentes sobre o consentimento afirmativo coloca em pauta sobre a elevada frequência com que as pessoas se envolvem em práticas sexuais por pressão ou sem querer. É comum, principalmente entre mulheres, que não saibam como responder aos avanços do parceiro porque temem magoá-lo e que meninos se deixem envolver em atos sexuais porque os amigos estão incitando. Em outro exemplo, há casos em que as pessoas até estão inclinadas à interação sexual, mas, já não estão suficientemente conscientes sobre isso devido ao consumo excessivo de álcool. Além disso, muitas pessoas acreditam que devem se submeter ao ato sexual ou que podem exigir tais práticas simplesmente porque estão dentro de um relacionamento, como o namoro ou o casamento. Tais contextos provam que há muitas circunstâncias em que os indivíduos participam ou são submetidos a contatos íntimos sem estarem realmente interessados ou em condições de admitir isso, o que é errado.

Quando tais cenários são considerados, tem-se que o consentimento afirmativo é importante principalmente para evitar qualquer forma de envolvimento sexual violento, pois, ele elimina dúvidas de que alguém está realmente aberto ao contato íntimo. Ou seja, se há consentimento explícito e os pares são maiores de 14 anos, está tudo bem em manterem contatos sexuais. Se o consentimento não é tão claro diante de uma proposta sexual, se a pessoa responde de forma vacilante ou apenas silencia, se apenas sorri e deixa rolar, se parece resistente ou receosa, se tem consciência reduzida pelo consumo de álcool ou drogas - para nenhuma dessas situações é interessante prosseguir com os contatos íntimos, sob risco de se ter um comportamento desrespeitoso e forçado, e portanto, que pode ser tomado como abusivo.

Sob tal perspectiva, os adolescentes devem ser ensinados sobre a necessidade de receberem um “SIM” claro em todas as vezes que iniciarem uma interação sexual. Do mesmo modo, esses jovens devem entender que precisam ter seus desejos respeitados para esses contatos e que não precisam se submeter ou admitir relações com as quais não estejam plenamente à vontade. 

Liliane Domingos Martins

13 de abril de 2022Comments are off for this post.

O Adulto de Confiança

Para qualquer um, é importante ter amigos leais. São esses parceiros que convidamos para dividir momentos alegres, com quem contamos para desabafar e para nos apoiar em momentos difíceis da vida. Com as crianças e adolescentes, isso também é verdade. Elas precisam de colegas disponíveis para as brincadeiras e descobertas cotidianas. Mais do que isso, elas precisam de adultos de confiança, que as orientem e auxiliem ante a qualquer problema da vida.

O adulto de confiança é aquele que se dispõe a ouvir a criança sobre tudo aquilo que lhe acontece. O laço de credibilidade entre os dois se forma exatamente quando há interesse genuíno por parte da pessoa mais velha em saber o que acontece na vida do mais novo, sejam coisas boas ou ruins. Nesses casos, as conversas tornam-se um hábito e o adulto procura legitimar as vivências do pequeno com quem interage: não vai rir ou debochar do sentimento exposto, como se fosse mera “coisa de criança”. O adulto de confiança entende que são as experiências da vida que trazem aprendizado e, assim, reconhece que a realidade das crianças e adolescentes ainda está em construção. Ele respeita esse processo, explicando sobre o mundo e sobre as emoções que aparecem no dia-a-dia dos infantes. É essa atitude que faz com que crianças e adolescentes se sintam amparados e que voltem para falar de cada contratempo que lhes alcançar.

O adulto de confiança pode ser o pai, a mãe, um professor querido, um dos avós, uma tia… Que bom seria se cada criança tivesse muitas pessoas com quem falar daquilo que mais lhe importa. Com o que foi dito, fica fácil perceber que a ideia aqui é de que ela saiba exatamente aquele com quem se sentiria mais confortável para revelar, por exemplo, um episódio de abuso sexual. Contar sobre esse tipo de violência é complicado e é algo que muitas vítimas tendem a adiar por não saberem quem vai realmente ajudar. Ter um adulto de confiança elimina essa dúvida e essa angústia.   

Falamos na figura de um adulto porque é quem, pela maior maturidade, normalmente tem mais condições de avaliar a dimensão da adversidade enfrentada pela criança/adolescente e assumir as providências necessárias frente a tal questão. Em situações de abuso sexual, é mais provável que um adulto ofereça o devido acolhimento para a vítima, ajudando a resguardá-la de novos contatos com o agressor e a efetivar denúncia.

Fique atento! Crianças sem adultos de confiança são mais vulneráveis e tendem a crescer mais inseguras. Comece a criar esse vínculo com seu filho desde que ele é pequeno ou, se ele já se tornou adolescente, não é tarde para buscar maior aproximação. 

Liliane Domingos Martins