De acordo com o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213 (na redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009), estupro é: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Apesar da clareza que o conceito de estupro assume na legislação brasileira, na prática, a sociedade tende a relativizar a vitimização sexual da mulher a depender do contexto do crime e dos envolvidos. Isso quer dizer que a violência sexual, na prática, é tratada como um valor relativo, e não absoluto, dependendo das condições em que ocorre. Nota-se, assim, que existe uma distância entre aquilo que se vê no texto da lei e aquilo que se observa na sociedade - e consequentemente, na aplicação da lei na vida real - onde fatores sócio históricos e culturais interferem na percepção dos fatos e em seu desenrolar.
A legislação brasileira sobre crimes sexuais é rica, positiva e prevê punição que será aumentada condicionada a agravantes (como os casos de estupro coletivo; contra vulneráveis; praticado por ascendente, padrasto, tio, etc.; quando resulta em gravidez; dentre outros). Além disso, a lei é clara em apontar a existência de crime quando a vítima não é capaz de dar consentimento ao ato sexual, como é o caso de uma vítima bêbada, por exemplo. Do ponto de vista legislativo, a ausência de consentimento é o ponto que possibilita a aplicação da punição ao agente que praticou a conduta criminosa.
A violência sexual é um tipo de crime que, em termos psicológicos, produz marcas que colocam a vítima em condição de grande fragilidade, com sentimento de impotência, medo e vergonha. No Brasil, essas marcas são ainda acrescidas de um viés cultural machista e conservador que tende a olhar para a violência buscando causas e responsabilidades para além do próprio comportamento do agressor.
Nessa lógica cultural misógina, é comum o discurso de responsabilização da vítima pela própria violência sexual sofrida, de modo que surgem construções que responsabilizam o comportamento da vítima, as roupas que usava, o fato de estar na rua/bar/festa/viagem, ter usado alguma bebida alcoólica etc. Em outras palavras, nosso país carrega ao longo da história uma carga conservadora sobre a mulher e a sexualidade feminina. É esse viés cultural e sexista que comumente produz uma inversão de papéis onde a vítima é apontada como a responsável pela violência que sofreu.
Denunciar os danos produzidos por essa tendência machista e conservadora da nossa sociedade é um grande desafio pois, comumente, essa discussão é apontada como “exagero” ou “mimimi”. Isso acontece porque a postura de diminuição e controle sobre a mulher é algo tão naturalizado no cotidiano, que ganha “ares de paisagem”. O ideal da mulher “bela, recatada e do lar” encontra-se diluído na sociedade como um todo, impregnado nas instituições, inclusive nos órgãos de investigação e de justiça. Trata-se de um padrão cultural ancorado em preconceitos e estereótipos de gênero, que fundamenta argumentos de culpabilização da vítima.
É nesse contexto que surgem os discursos que sugerem (às vezes de forma sutil, outras vezes, de forma muito direta) que a vítima provocou, mereceu ou consentiu a violência, em razão de seus hábitos sociais considerados “perigosos”. Tem-se, assim, uma inversão completa da lógica agressor-vítima, de modo que o foco muitas vezes fica localizado na vítima, que tem que explicar o que estava fazendo naquele local, como estava vestida, o que havia bebido, em quais companhias estava etc, inclusive dentro do próprio sistema de justiça.
Ao que parece, o antigo bordão “prendam suas cabras que o meu cabrito está solto” ainda hoje traduz nossa organização social que impõe o controle da sexualidade feminina e um padrão comportamental de reclusão, frente a uma postura de liberdade e imposição masculina. Observar a naturalidade com que bordões como esse são utilizados sem nenhum questionamento indicam a urgente necessidade de discussões e enfrentamentos que apontem para a igualdade de gênero e para a aceitação da liberdade feminina, sem a imposição de regramentos e controles sobre o corpo da mulher.
Silvia Pereira Guimarães