20 de julho de 2022Comments are off for this post.

Só especialistas podem atender vítimas de abuso?

O abuso sexual é um tema complexo, que gera angústia e desconforto. Por isso, muitos profissionais se sentem inaptos para lidar com esse tema, acreditando que são incapazes de atender vítimas de violência sexual. Entretanto, se você é um profissional da área de saúde, muito possivelmente já recebeu em seu consultório algumas delas.

 Infelizmente, a violência sexual é muito presente em nossa sociedade e é bem improvável que esse problema não tenha batido à sua porta. Então, se você acha que nunca atendeu uma vítima de abuso, provavelmente é porque não soube identificar os sinais que seu paciente trouxe.

Além disso, também pode ter acontecido de um paciente chegar diretamente com essa queixa, sendo que você explicou não ser sua área e encaminhou a caso.

Sabemos que há profissionais dedicados a pesquisar profundamente o tema do abuso sexual, especialmente quando trabalham constantemente com vítimas ou agressores. De todo modo, ainda que não seja esse o seu caso, se você recebe pessoas em tratamento, principalmente se lida com público infantil, você precisa adquirir algumas informações sobre esse assunto, para que possa conduzir adequadamente os tratamentos e melhor orientar pacientes e familiares.

Alguns profissionais se apavoram quando recebem casos de abuso e se apressam em pesquisar para onde devem encaminhar aquele paciente. Sobre isso, é preciso que você tenha clareza do seu papel diante da situação e sobre as condutas que lhe cabem ou não. Explico:

Vejamos o seguinte contexto: um psicólogo que atende crianças e recebe um paciente vindo por suspeita de abuso. Será que ele deve encaminhar essa criança para um terapeuta especialista em violência sexual? Não necessariamente.

Claro que o psicólogo pode ter ressalvas pessoais com relação ao tema e melhor faria em repassar o caso para alguém que se sinta mais confortável em tratar a criança. Do contrário, tal profissional pode receber esse paciente lidando com o sofrimento e as consequências da vitimização como resultado de um conflito como qualquer outro. Nesse sentido, a mesma técnica psicoterapêutica empregada para atender aos outros casos pode ser usada com as vítimas de abuso.

Por outro lado, é preciso que esse psicólogo tenha conhecimento sobre o fenômeno da violência sexual, para que mantenha sua escuta clínica livre de crenças ou preconceitos do senso comum, que podem atrapalhar no acolhimento do paciente e na condução do tratamento. Saber sobre como se dá o processo de aliciamento e a síndrome do segredo e da adição, estar avisado da possibilidade de retratação, ter noções sobre sugestionabilidade e de como se estruturam as falsas memórias, por exemplo, possibilita o sucesso do processo psicoterapêutico e evita a revitimização.

Outro ponto importante para esse profissional é distinguir sua atuação como psicólogo clínico do papel de outros profissionais que podem vir a atender a criança, como psicólogos ligados à assistência social ou à área da justiça. Isso é fundamental tanto para evitar mal entendidos, quanto para lidar de maneira genuína e adequada com as expectativas de pais e familiares da criança. A sobreposição de atribuições é extremamente danosa ao acompanhamento adequado da vítima e pode, inclusive, ser prejudicial ao esclarecimento da denúncia e à responsabilização do possível agressor.

Juliana Borges Naves

13 de julho de 2022Comments are off for this post.

Sexting e nudes

Os avanços tecnológicos têm implicações diretas na nossa forma de viver e de estar no mundo. Do mesmo modo, a ampliação da vida digital tem impactado diretamente o modo como nos relacionamos com as outras pessoas. Esses impactos alcançam também os jovens e a maneira como vivenciaram os diversos aspectos da vida em desenvolvimento, inclusive a sexualidade. 

Nascidos em uma época em que a vida on-line e a internet fazem parte do cotidiano, os adolescentes da atualidade transitam facilmente pelos ambientes digitais e demonstram grande habilidade na utilização de recursos e ferramentas muitas vezes consideradas muito complexas pelos adultos com menos fluência nesse universo. 

Acostumados desde muito pequenos a lidar com a tecnologia, os jovens vivenciam como algo natural a exposição advinda das redes sociais e do compartilhamento de aspectos da vida privada por meio de fotos e vídeos. A exibição pública da vida cotidiana faz parte da lógica de funcionamento das redes sociais, que exalta e valoriza a exposição pessoal, e é nesse contexto que surgem os nudes e os sextings produzidos pelos jovens. 

Nude é uma palavra que ficou popularizada na expressão “manda nudes”, que se refere ao pedido para que a pessoa envie fotos pessoais sem roupas. Já a palavra sexting é uma junção da palavra sex (sexo) + texting (torpedo), e que hoje faz referência às trocas de mensagens de caráter erótico e sensual por aplicativos de mensagens, muitas vezes contendo vídeos e fotos. 

Nesse aspecto, a diferença geracional, naturalmente observada entre pais e filhos, torna-se ainda mais evidente. De modo geral, os pais percebem os nudes e o sexting como uma superexposição perigosa, constrangedora e de difícil aceitação. Por outro lado, para muitos adolescentes, os nudes são apenas mais uma forma de se relacionar com o outro ou um modo de afirmação pessoal. Muitas vezes, para esse jovem, um nude é entendido como uma forma de reconhecimento entre os pares, de valorização do corpo, de autoafirmação, de experimentação de prazer e autoconfiança que dificilmente é compreendida pelos mais velhos. Assim, os nudes e sextins se configuram como os antigos jogos sexuais da adolescência, mas dentro do universo da internet. 

Independentemente do significado que o nude adquire entre os diferentes grupos de adolescentes, essa prática guarda um risco que frequentemente é calculado apenas pelos mais velhos: o perigo da divulgação não autorizada deste conteúdo ou a viralização (perda do controle desse material) na internet. Tal situação, como já visto em inúmeros casos reais, produz um ciclo de estigmatização e culpabilização que gera grande sofrimento aos envolvidos. 

Vale registrar ainda que, ainda que consentidos, os nudes produzidos por adolescentes são materiais que não podem circular na internet. O envio, posse ou produção de fotos de adolescentes nus podem caracterizar distribuição, posse e produção de pornografia infantil, o que configura crime.

Por esse motivo, é importante distinguir a habilidade instrumental dos jovens com o uso das tecnologias e da internet, da capacidade de uso crítico e responsável desses recursos. As extensas horas navegando na internet não significam maturidade e capacidade de cálculo dos impactos que as ações praticadas no mundo virtual têm na vida real de cada um. 

Assim, meninos e meninas, ainda que muito habilitados para o uso de ferramentas digitais, precisam ser educados para fazer boas escolhas on-line e desfrutar de forma ética e responsável das oportunidades advindas da tecnologia.  

Renata Pereira Guimarães

7 de julho de 2022Comments are off for this post.

A culpabilização feminina

De acordo com o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213 (na redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009), estupro é: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Apesar da clareza que o conceito de estupro assume na legislação brasileira, na prática, a sociedade tende a relativizar a vitimização sexual da mulher a depender do contexto do crime e dos envolvidos. Isso quer dizer que a violência sexual, na prática, é tratada como um valor relativo, e não absoluto, dependendo das condições em que ocorre. Nota-se, assim, que existe uma distância entre aquilo que se vê no texto da lei e aquilo que se observa na sociedade - e consequentemente, na aplicação da lei na vida real - onde fatores sócio históricos e culturais interferem na percepção dos fatos e em seu desenrolar. 

A legislação brasileira sobre crimes sexuais é rica, positiva e prevê punição que será aumentada condicionada a agravantes (como os casos de estupro coletivo; contra vulneráveis; praticado por ascendente, padrasto, tio, etc.; quando resulta em gravidez; dentre outros). Além disso, a lei é clara em apontar a existência de crime quando a vítima não é capaz de dar consentimento ao ato sexual, como é o caso de uma vítima bêbada, por exemplo. Do ponto de vista legislativo, a ausência de consentimento é o ponto que possibilita a aplicação da punição ao agente que praticou a conduta criminosa. 

A violência sexual é um tipo de crime que, em termos psicológicos, produz marcas que colocam a vítima em condição de grande fragilidade, com sentimento de impotência, medo e vergonha. No Brasil, essas marcas são ainda acrescidas de um viés cultural machista e conservador que tende a olhar para a violência buscando causas e responsabilidades para além do próprio comportamento do agressor. 

Nessa lógica cultural misógina, é comum o discurso de responsabilização da vítima pela própria violência sexual sofrida, de modo que surgem construções que responsabilizam o comportamento da vítima, as roupas que usava, o fato de estar na rua/bar/festa/viagem, ter usado alguma bebida alcoólica etc. Em outras palavras, nosso país carrega ao longo da história uma carga conservadora sobre a mulher e a sexualidade feminina. É esse viés cultural e sexista que comumente produz uma inversão de papéis onde a vítima é apontada como a responsável pela violência que sofreu. 

Denunciar os danos produzidos por essa tendência machista e conservadora da nossa sociedade é um grande desafio pois, comumente, essa discussão é apontada como “exagero” ou “mimimi”. Isso acontece porque a postura de diminuição e controle sobre a mulher é algo tão naturalizado no cotidiano, que ganha “ares de paisagem”. O ideal da mulher “bela, recatada e do lar” encontra-se diluído na sociedade como um todo, impregnado nas instituições, inclusive nos órgãos de investigação e de justiça. Trata-se de um padrão cultural ancorado em preconceitos e estereótipos de gênero, que fundamenta argumentos de culpabilização da vítima. 

É nesse contexto que surgem os discursos que sugerem (às vezes de forma sutil, outras vezes, de forma muito direta) que a vítima provocou, mereceu ou consentiu a violência, em razão de seus hábitos sociais considerados “perigosos”. Tem-se, assim, uma inversão completa da lógica agressor-vítima, de modo que o foco muitas vezes fica localizado na vítima, que tem que explicar o que estava fazendo naquele local, como estava vestida, o que havia bebido, em quais companhias estava etc, inclusive dentro do próprio sistema de justiça. 

Ao que parece, o antigo bordão “prendam suas cabras que o meu cabrito está solto” ainda hoje traduz nossa organização social que impõe o controle da sexualidade feminina e um padrão comportamental de reclusão, frente a uma postura de liberdade e imposição masculina. Observar a naturalidade com que bordões como esse são utilizados sem nenhum questionamento indicam a urgente necessidade de discussões e enfrentamentos que apontem para a igualdade de gênero e para a aceitação da liberdade feminina, sem a imposição de regramentos e controles sobre o corpo da mulher. 

Silvia Pereira Guimarães

25 de maio de 2022Comments are off for this post.

Só especialistas podem atender vítimas de abuso?

O abuso sexual é um tema complexo, que gera angústia e desconforto. Por isso, muitos profissionais se sentem inaptos para lidar com esse tema, acreditando que são incapazes de atender vítimas de violência sexual. Entretanto, se você é um profissional da área de saúde, muito possivelmente já recebeu em seu consultório algumas delas.

 Infelizmente, a violência sexual é muito presente em nossa sociedade e é bem improvável que esse problema não tenha batido à sua porta. Então, se você acha que nunca atendeu uma vítima de abuso, provavelmente é porque não soube identificar os sinais que seu paciente trouxe.

Além disso, também pode ter acontecido de um paciente chegar diretamente com essa queixa, sendo que você explicou não ser sua área e encaminhou a caso.

Sabemos que há profissionais dedicados a pesquisar profundamente o tema do abuso sexual, especialmente quando trabalham constantemente com vítimas ou agressores. De todo modo, ainda que não seja esse o seu caso, se você recebe pessoas em tratamento, principalmente se lida com público infantil, você precisa adquirir algumas informações sobre esse assunto, para que possa conduzir adequadamente os tratamentos e melhor orientar pacientes e familiares.

Alguns profissionais se apavoram quando recebem casos de abuso e se apressam em pesquisar para onde devem encaminhar aquele paciente. Sobre isso, é preciso que você tenha clareza do seu papel diante da situação e sobre as condutas que lhe cabem ou não. Explico:

Vejamos o seguinte contexto: um psicólogo que atende crianças e recebe um paciente vindo por suspeita de abuso. Será que ele deve encaminhar essa criança para um terapeuta especialista em violência sexual? Não necessariamente.

Claro que o psicólogo pode ter ressalvas pessoais com relação ao tema e melhor faria em repassar o caso para alguém que se sinta mais confortável em tratar a criança. Do contrário, tal profissional pode receber esse paciente lidando com o sofrimento e as consequências da vitimização como resultado de um conflito como qualquer outro. Nesse sentido, a mesma técnica psicoterapêutica empregada para atender aos outros casos pode ser usada com as vítimas de abuso.

Por outro lado, é preciso que esse psicólogo tenha conhecimento sobre o fenômeno da violência sexual, para que mantenha sua escuta clínica livre de crenças ou preconceitos do senso comum, que podem atrapalhar no acolhimento do paciente e na condução do tratamento. Saber sobre como se dá o processo de aliciamento e a síndrome do segredo e da adição, estar avisado da possibilidade de retratação, ter noções sobre sugestionabilidade e de como se estruturam as falsas memórias, por exemplo, possibilita o sucesso do processo psicoterapêutico e evita a revitimização.

Outro ponto importante para esse profissional é distinguir sua atuação como psicólogo clínico do papel de outros profissionais que podem vir a atender a criança, como psicólogos ligados à assistência social ou à área da justiça. Isso é fundamental tanto para evitar mal entendidos, quanto para lidar de maneira genuína e adequada com as expectativas de pais e familiares da criança. A sobreposição de atribuições é extremamente danosa ao acompanhamento adequado da vítima e pode, inclusive, ser prejudicial ao esclarecimento da denúncia e à responsabilização do possível agressor.

Silvia Pereira Guimarães

11 de maio de 2022Comments are off for this post.

Por que confundem abusadores e pedófilos?

Nem todo pedófilo é abusador e nem todo abusador é pedófilo. Sempre que essa frase é dita e que se busca explicar, à luz da Psicologia, sobre as diferenças entre as figuras do abusador sexual em relação à do pedófilo, comentários reativos e emocionados, por vezes ofensivos e raivosos, se fazem presentes. Por sua vez, basta uma análise menos apaixonada e uma leitura cuidadosa do conteúdo para se compreender as razões dessa distinção.

Para esclarecimento, o pedófilo é um adulto que tem desejo sexual por crianças, ou seja, aquele que se sente estimulado e excitado por meninos e meninas. É evidente que esse tipo de preferência sexual não é socialmente aceita, porém, boa parte das pessoas com transtorno pedofílico têm consciência disso, procura controlar seus impulsos e não chega a se envolver sexualmente com crianças. Nesses casos, portanto, os pedófilos não se tornam abusadores. 

Isso entendido, podemos pensar sobre quem são os abusadores. Os abusadores são aqueles que efetivamente se envolvem sexualmente com crianças, seja por meio da incitação sexual delas, de toques indevidos, de penetração ou qualquer outra forma de contato erotizado e precoce à idade. Alguns abusadores são pedófilos, à medida que são sexualmente atraídos por crianças e não refreiam suas vontades: seduzem e aliciam infantes para viverem com eles as suas preferências íntimas. Outra parte dos abusadores não têm necessariamente qualquer interesse sexual por crianças, mas abusam por outras razões: porque encontraram uma vítima desprotegida, sem atenção de outros adultos; porque se sentem poderosos em subjugar alguém mais fraco; por vingança de algum parente daquela criança ou pela desobediência dela; etc.

Os equívocos em relação aos dois termos surgem especialmente em função do que é difundido pela mídia. No geral, as reportagens sobre violência sexual de crianças e adolescentes colocam o pedófilo e o abusador como uma coisa só. Não bastasse a unificação desses conceitos em desconsideração à ciência da área, a mídia também tem ganhos em incitar o ânimo das pessoas através da criação de vilões e de espetáculos que atraem audiência, o que implica em comentários inflamados sobre esse assunto. 

Em meio a toda essa emocionalidade tão marcante é preciso que a racionalidade também ganhe espaço. A emoção é de grande utilidade para mover as pessoas a cobrarem pelos direitos de crianças e adolescentes, para se exigir que os crimes cometidos contra elas tenham a devida responsabilização. Por sua vez, a consideração racional acerca da distinção entre o pedófilo e o abusador permite compreender que não há nisso um propósito de defesa sobre qualquer um desses atores e que o pressuposto de tal categorização é unicamente didático.  

A devida distinção entre o pedófilo e o abusador existe porque as pessoas não podem ser criminalizadas tão somente por seus desejos, pelo que se passa na mente delas. Em verdade, somente os atos podem ser criminalizados, o que significa que apenas aqueles que realmente agrediram sexualmente uma criança, ou seja, os abusadores, serão devidamente responsabilizados por seus atos.

Esses esclarecimentos representam um compromisso do Instituto Alexis, que procura desmistificar confusões que as pessoas costumam ter sobre a violência sexual de crianças e adolescentes, já que essas muitas vezes destoam dos resultados dos estudos e pesquisas na área.  

Liliane Domingos Martins

13 de abril de 2022Comments are off for this post.

O Adulto de Confiança

Para qualquer um, é importante ter amigos leais. São esses parceiros que convidamos para dividir momentos alegres, com quem contamos para desabafar e para nos apoiar em momentos difíceis da vida. Com as crianças e adolescentes, isso também é verdade. Elas precisam de colegas disponíveis para as brincadeiras e descobertas cotidianas. Mais do que isso, elas precisam de adultos de confiança, que as orientem e auxiliem ante a qualquer problema da vida.

O adulto de confiança é aquele que se dispõe a ouvir a criança sobre tudo aquilo que lhe acontece. O laço de credibilidade entre os dois se forma exatamente quando há interesse genuíno por parte da pessoa mais velha em saber o que acontece na vida do mais novo, sejam coisas boas ou ruins. Nesses casos, as conversas tornam-se um hábito e o adulto procura legitimar as vivências do pequeno com quem interage: não vai rir ou debochar do sentimento exposto, como se fosse mera “coisa de criança”. O adulto de confiança entende que são as experiências da vida que trazem aprendizado e, assim, reconhece que a realidade das crianças e adolescentes ainda está em construção. Ele respeita esse processo, explicando sobre o mundo e sobre as emoções que aparecem no dia-a-dia dos infantes. É essa atitude que faz com que crianças e adolescentes se sintam amparados e que voltem para falar de cada contratempo que lhes alcançar.

O adulto de confiança pode ser o pai, a mãe, um professor querido, um dos avós, uma tia… Que bom seria se cada criança tivesse muitas pessoas com quem falar daquilo que mais lhe importa. Com o que foi dito, fica fácil perceber que a ideia aqui é de que ela saiba exatamente aquele com quem se sentiria mais confortável para revelar, por exemplo, um episódio de abuso sexual. Contar sobre esse tipo de violência é complicado e é algo que muitas vítimas tendem a adiar por não saberem quem vai realmente ajudar. Ter um adulto de confiança elimina essa dúvida e essa angústia.   

Falamos na figura de um adulto porque é quem, pela maior maturidade, normalmente tem mais condições de avaliar a dimensão da adversidade enfrentada pela criança/adolescente e assumir as providências necessárias frente a tal questão. Em situações de abuso sexual, é mais provável que um adulto ofereça o devido acolhimento para a vítima, ajudando a resguardá-la de novos contatos com o agressor e a efetivar denúncia.

Fique atento! Crianças sem adultos de confiança são mais vulneráveis e tendem a crescer mais inseguras. Comece a criar esse vínculo com seu filho desde que ele é pequeno ou, se ele já se tornou adolescente, não é tarde para buscar maior aproximação. 

Liliane Domingos Martins

2 de março de 2022Comments are off for this post.

A Rede de Proteção de Crianças e Adolescentes

O abuso sexual de crianças e adolescentes é um fenômeno complexo. Por exemplo, os sinais e sintomas se dão de forma variada e individualizada, o que significa que não se conclui que a violência ocorreu apenas pela análise da expressão sintomatológica de alguém. Outro exemplo se dá com a compreensão de que os agressores sexuais não têm um perfil específico, ou seja, não são tão facilmente identificados como muita gente pensa. Essas ilustrações demonstram que não há fórmulas prontas para se falar desse tipo de problema e, portanto, abordagens multidisciplinares são essenciais. É assim que começamos a entender sobre a importância do trabalho e das intervenções em rede.

A rede de proteção à criança e ao adolescente corresponde ao conjunto de órgãos governamentais e não-governamentais que atuam de forma integrada para garantir as melhores condições de atendimento e suporte para esse público. Ela contempla entidades de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça, além de convocar à participação da sociedade civil, por meio das famílias, igrejas, centros comunitários, etc. A ideia é de que, dada a complexidade das situações de negligência e violência, classes profissionais ou serviços isolados são limitados para o adequado amparo que as vítimas necessitam, especialmente aquelas de desenvolvimento incompleto, consideradas vulneráveis. Assim, é necessária a articulação entre esses diversos atores para garantir todos os cuidados exigidos por uma criança ou adolescente vitimizado.

Isso significa que cada criança ou adolescente em nossa sociedade é sempre objeto de atenção por parte de inúmeros grupos profissionais, isso com objetivo de resguardar suas melhores condições de desenvolvimento, reconhecendo-os enquanto indivíduos e buscando mecanismos para mantê-los a salvo de todo desrespeito. Na prática, frente a uma denúncia de abuso sexual revelada na escola para um professor, por exemplo, diversos outros profissionais são acionados, como o diretor da instituição de ensino, um conselheiro tutelar para receber e encaminhar a denúncia, o delegado para investigar, o médico para avaliar as condições físicas daquela vítima e propor tratamento, o psicólogo para avaliar e lidar com as condições mentais da criança, etc. 

O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) é o nome oficial da rede de proteção brasileira. Surgido em 2006 a partir da Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), esse sistema sustenta que os diversos atores que o compõem devem adotar práticas integrativas segundo três eixos específicos: o de defesa, o de promoção de direitos e o de controle social. 

O primeiro deles, o eixo de defesa, é voltado à viabilização do acesso à Justiça e à  adequada responsabilização de ofensores em situações de violação de direitos. Dedica-se, portanto, a exigir a aplicabilidade das leis e envolve órgãos como o conselho tutelar, as polícias militar e civil, as varas de infância, entre outras entidades. 

O eixo de promoção de direitos responsabiliza-se pela implementação de programas, políticas e serviços que assegurem os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Seu foco, portanto, direciona-se a ações com vistas a garantir que crianças e adolescentes de determinada comunidade tenham amplo acesso à educação, saúde, segurança, lazer, etc. Seus atores envolvem as creches e escolas, postos de saúde, centros esportivos, CRAS e CREAS, entre outros.

O eixo de controle social prevê a avaliação, o acompanhamento e a fiscalização das estratégias anteriormente citadas. Abrange atividades com objetivo de verificar as condições de funcionamento das entidades destinadas à proteção integral de crianças e adolescentes, a formulação de resoluções, normas técnicas ou diretrizes para esses serviços e o monitoramento quanto à qualidade dos trabalhos que oferecem. Para tal, os conselhos de direitos assumem papel central. 

De modo geral, o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente fortalece os diversos órgãos de sua rede, o que significa melhorias relevantes na sociedade acerca de ameaças e violações contra nossos pequenos. É importante conhecer como os serviços funcionam em sua cidade, para indicá-los aos membros de sua comunidade que necessitam de apoio e para cobrar qualquer tipo de omissão pública. Fique atento!

Liliane Domingos Martins

9 de fevereiro de 2022Comments are off for this post.

Os impactos da subnotificação da violência sexual

Atualmente, estima-se que apenas 10% dos casos de violência sexual no Brasil são notificados, ou seja, passaram por algum tipo de registro ou denúncia em órgãos de polícia e/ou proteção. Isso significa que a maioria das situações que envolvem uma violência de natureza sexual fica restrita à própria vítima e, quando muito, a um problema a ser resolvido em contexto familiar. São comuns as soluções caseiras, onde busca-se afastar a vítima do agressor e dar suporte à vítima exclusivamente dentro do ambiente privado.

O baixo índice de denúncias sobre a violência sexual produz um grave efeito colateral: é como se a maior parte dessa realidade não existisse. Com dados oficiais incompletos e que não correspondem à realidade, temos acesso apenas à ponta do iceberg, e não conseguimos enxergar de fato seu tamanho real.

A subnotificação dos casos tem um impacto significativo no direcionamento que será dado às diversas políticas públicas relacionadas à violência, sejam elas voltadas para a prevenção ou para o combate a esse tipo de crime. O planejamento das ações governamentais se dá conforme dados e estatísticas oficiais e, sem essas informações ou com informações imprecisas, é como se as políticas fossem formuladas às cegas, comprometendo significativamente sua efetividade. 

A subnotificação da violência sexual faz com que esse problema social pareça menor do que ele realmente é e, consequentemente, que o investimento público nessa área seja igualmente reduzido. Assim, planos de prevenção à violência (nas escolas e comunidade), investimentos nos órgãos (estruturação, capacitação etc.) que atuam na responsabilização dos agressores, investimentos em políticas socioassistenciais de acompanhamento das famílias e de cuidados (médicos, psicológicos, jurídicos etc.) das vítimas, investimentos na estruturação de canais de informação e denúncia, ações de articulação dos diversos órgãos da rede de proteção, dentre outras ações, sofrem grande impacto em razão da subnotificação. 

Frente a isso, vale ressaltar a importância do acesso facilitado aos canais de denúncia de casos de violência. Diante de um crime de tamanho impacto pessoal e social, a facilidade em denunciar pode determinar a continuidade ou não da violência. Além disso, pode ser a diferença entre a vítima receber o adequado tratamento e a reparação dos danos causados pela violência ou não. Ademais, essa facilidade contribui para a construção de uma base de dados um pouco mais próxima da realidade e, consequentemente, ao planejamento de ações mais condizentes com o problema. 

Atualmente, a falta de dados e a imprecisão das informações reflete a pouca importância que se dá ao combate à violência sexual no Brasil e, ao mesmo tempo, contribui para a perpetuação dessa realidade. Trata-se de um ciclo difícil de ser rompido e que exige diálogo e mobilização coletiva para o seu enfrentamento. 

Silvia Pereira Guimarães

2 de fevereiro de 2022Comments are off for this post.

Não Faça Promessas

Movidas pela ansiedade natural de receber uma denúncia de violência sexual, muitas pessoas fazem promessas às vítimas que dificilmente podem ser cumpridas ou que envolvem questões às quais não podem controlar. Esse tipo de comportamento pode ter efeitos bastante ruins, pois, frente a cada compromisso desfeito, as crianças e adolescentes tendem a se mostrar mais desconfiadas acerca dos adultos.

Em primeiro lugar, as promessas podem resultar do impulso da pessoa mais velha em proteger os pequenos que estão sendo ouvidos. Mobilizado pela gravidade do problema narrado, o adulto pode, equivocadamente, dar garantias de que vai resolver aquela situação, que a vítima não vai mais se encontrar com o agressor ou ser submetida novamente à violência. Nesses casos, por mais boa vontade que se tenha para impedir que a criança ou adolescente continue naquele contexto adverso, podem ser encontradas circunstâncias que complicam a adoção dessas medidas tão necessárias de proteção. Por exemplo, o abusador pode mandar mensagens para a vítima pela internet e lhe fazer ameaças, isso mesmo depois de lhe prometerem que estaria segura e resguardada de qualquer contato com ele. Ou ainda, a família pode se mudar repentinamente para evitar a repercussão da denúncia, fazendo com que a criança ou adolescente continue submetida ao parente agressor, mesmo que outras pessoas tenham declarado que, a partir de seu relato, os abusos iriam parar. 

Em segundo lugar, essas promessas também costumam ser feitas com a intenção de estimular a criança a falar mais sobre os abusos, a detalhar os episódios de violência. Nesses casos, interessada em entender melhor tais acontecimentos, a pessoa que acolhe o relato pode prometer, por exemplo, que é a última vez que a vítima vai falar sobre o assunto. Aqui, apesar da promessa, não há garantias de que outros profissionais, ou mesmo os familiares da criança, irão abrir mão de saber mais sobre as ocasiões em que ela foi agredida. Com esse mesmo objetivo de incentivar a vítima a se sentir mais à vontade e aberta para tratar da situação abusiva, muitas vezes lhe prometem ainda que ninguém vai saber do que está sendo tratado, o que não corresponde à verdade, já que um relato desse tipo tem obrigatoriedade legal de ser comunicado às autoridades.

A grande questão sobre essas promessas é que, quando quebradas, podem fazer a vítima crer que o adulto mentiu para ela. Isso é especialmente complicado quando se considera que o abuso sexual também costuma representar uma quebra de confiança por parte de uma pessoa mais velha, que deveria lhe amparar e proteger. As promessas descumpridas reforçam um ciclo de descrédito das crianças em relação aos mais velhos e são revitimizantes, pois provocam angústia e insegurança com o processo subsequente à revelação. 

Lembre-se que falar de uma experiência tão dolorosa é algo muito difícil. Quem escuta a criança, portanto, deve ser cuidadoso quanto às promessas que faz. O adequado acolhimento da vítima envolve muita atenção para a forma como nos dirigimos a ela. A ideia é que ela se sinta amparada e encorajada para lidar com as etapas que se seguem à denúncia.

Liliane Domingos Martins

5 de janeiro de 2022Comments are off for this post.

O Carinho da Vítima pelo Agressor

Muita gente acha estranho que uma vítima de violência sexual possa ter bom vínculo com seu agressor. Há uma expectativa social de que uma pessoa submetida a abuso reaja com raiva, revolta, rejeição, medo ou qualquer outra emoção que explicite uma convivência problemática entre eles. Se isso não acontece, quase sempre a situação acaba desacreditada, mas a verdade é que mesmo nessas circunstâncias difíceis, é comum que exista uma relação positiva entre a criança e seu violador, sendo que as razões para isso merecem ser discutidas.

Em primeiro lugar, vale lembrar que a maior parte dos registros de abuso ocorre dentro de casa, cometido por um familiar da vítima. Nesses casos, há laços afetivos transmitidos para a criança desde muito cedo e que tendem a ser naturalmente assimilados por ela. Além disso, aquele que abusa costuma ser responsável por uma série de cuidados em relação à vítima, mesclando atos de carinho e atenção com os episódios de violência. Isso significa que apesar de todo o impacto emocional dos abusos, eles tendem a figurar como acontecimentos específicos em meio a outros muitos gestos afetivos do agressor. Ou seja, enquanto ele não abusa, ele brinca, faz a criança rir, cuida quando ela está doente, cobra as lições de casa, exige que coma frutas e verduras, etc. Com essas condições, a vítima pode até ter alguma confusão sobre como se sente em relação ao seu parente abusivo, mas, na maior parte do tempo, está tudo bem entre eles. 

Em segundo lugar, é usual que os agressores seduzam crianças e adolescentes com ganhos materiais ou emocionais que os colocam em uma posição de referência para suas vítimas. Essa é uma estratégia típica de abusadores, que criam uma “relação especial” com as crianças e jovens por meio de presentes, dinheiro, elogios e atenção, por exemplo. A manipulação que fazem os ajuda a serem bem queridos pelas crianças e adolescentes, pois o agressor se esforça e investe tempo para sustentar uma falsa atmosfera de amizade com a vítima. Assim, é ilustrativo pensar no caso de uma criança diabética, que tem restrições alimentares severas, mas que encontra um tio brincalhão e que “quebra as regras” dos demais adultos, oferecendo-lhe doces e guloseimas escondidas. Esse pode ser um passo do abusador para aproximações físicas sucessivas e contatos cada vez mais íntimos com sua vítima, que, de outro modo, lhe resguarda apreço e gosta de sua presença.

  Em terceiro lugar, a criança pode ter uma ligação positiva com seu agressor pelo simples fato de entender o abuso como uma forma de carinho, similar ao que experiencia quando ganha um beijo, um abraço ou um cafuné. Sim, o toque nas partes íntimas de crianças, assim como ocorre com os adultos, elicia sensações que são prazerosas e que podem fazer com que queiram mais desse contato. Sabendo disso, muitos agressores são cautelosos para não provocar dor em suas vítimas e para fazer com que elas internalizem aquela interação como uma demonstração afetiva típica. Crianças dificilmente compreendem o caráter erótico da situação a que estão sendo expostas nesses casos e, na verdade, costumam acreditar que os adultos sabem muito bem o que estão fazendo, afinal, são eles quem lhes orientam sobre o mundo. Essas são circunstâncias em que a vítima é levada a confundir a experiência do prazer fisiológico com gestos de carinho, sendo que é bastante comum que os abusos sejam revelados porque as crianças, principalmente aquelas mais novas, eventualmente pedem para que um outro cuidador brinque com ela da mesma forma que seu agressor faz: com um beijo molhado na perereca, manipulando o pipiu, etc. Aqui, é importante destacar que, ainda que esse tipo de contato seja vivenciado como prazeroso para a criança, ele  é prejudicial e tem potencial traumático para ela.

Tais pontos demonstram sobre como o abuso sexual e seu caráter ofensivo pode ser de difícil compreensão para a criança ou adolescente que, portanto, nem sempre reage ao evento como boa parte das pessoas espera. A violência sexual ocorre mesmo em contextos em que parece estar tudo bem. É preciso estarmos alerta para isso!

Liliane Domingos Martins