Não é incomum que uma vítima volte atrás em seu depoimento, alegando que estava mentindo quando mencionou ter sido sexualmente abusada. Essa situação costuma tranquilizar a família, que se imagina livre do fantasma da violência sexual. No entanto, é preciso cautela, pois o fato de que uma criança ou um adolescente desminta sua primeira versão - o que se conhece tecnicamente como fenômeno da retratação - não necessariamente  indica que se tratava de uma situação inverídica.

Imagine que um adolescente ou uma criança próxima a você conte de uma cena sexual provocada por um amigo ou alguém da família. O que se segue é uma crise imensa. Junto com a preocupação com o sofrimento que ela deve estar passando, podem surgir muitas dúvidas e vários questionamentos: “Em que momento aquilo poderia ter ocorrido? Eles costumavam ficar sozinhos? Mas a criança/adolescente sempre o tratou bem … Não seria esperado que o repelisse, nesse caso? Mas por que não contou naquele mesmo dia… porque demorou tanto pra falar? Aliás, na ocasião em que disse que aconteceu o abuso, a família toda estava lá. Ninguém viu nada?” 

Na tentativa de esclarecer a situação, é bem comum que muitas perguntas ou comentários sejam feitos à vítima, como: “Mas você tem certeza? Será que não se enganou? Às vezes ele só estava brincando com você… Ele é desse jeito mesmo.” Ou ainda pior: “Por que você não contou antes? Por que não fez nada? Já falei pra você tomar cuidado... por que não saiu de perto dele na hora?” 

Agora, tente se colocar no lugar dessa vítima. Você sente que não acreditam tanto em você e percebe que o relato do abuso causou muito conflito. As pessoas andam nervosas e preocupadas, estão brigando. Além disso, quem mexeu com você talvez seja preso e pode ser que a família passe por dificuldade, pois ele é quem sustenta a casa. Você não desejava acabar com a família, só queria que aquilo parasse e acredita que agora vai ser deixado em paz. Além do mais, você não aguenta mais falar desse assunto. Depois do que contou, já repetiu a mesma história várias vezes: para sua mãe, para sua avó, para a tia, depois no Conselho Tutelar, na Delegacia, na psicóloga... toda hora tem que falar de novo e isso te incomoda. Talvez o melhor fosse você dizer que estava mentindo. Assim, fica todo mundo bem e ninguém te culpa de nada. 

Esse exercício, dá uma pequena dimensão do quanto é complicado para a vítima sustentar sua versão sobre o que lhe aconteceu. Trata-se de um assunto íntimo, traumático, que envolve não só a vida dela, como também a estabilidade dos laços familiares. 

Abordagens inadequadas diante de um relato de abuso são muitas vezes desastrosas. Primeiro, porque aumentam o sofrimento da criança ou do adolescente e podem inclusive agravar os sintomas psíquicos ou comportamentais decorrentes da própria violência sexual. Depois, porque desencorajam a vítima a manter seu relato, dificultando, inclusive a punição do agressor.

Juliana Borges Naves