O abuso sexual de crianças e adolescentes é um tipo de violência grave, que tem impactos diversos sobre a vítima. Socialmente, é um crime cuja natureza causa repulsa e horror, e facilmente mobiliza as pessoas que escutam relatos sobre esse tipo de vitimização.
Por se tratar de algo grave, comumente, as pessoas criam expectativas sobre aquilo que se espera de uma vítima de violência sexual. É corriqueiro que as pessoas desenvolvam crenças de que uma criança ou adolescente abusado(a), ao falar sobre o que vivenciou, irá chorar, se emocionar, se constranger e demonstrar grande sofrimento. Apesar de ser uma perspectiva socialmente comum e de fato ocorrer em muitos casos, nem sempre a vítima se comporta segundo esse padrão.
Nessas situações de quebra de expectativas, é possível perceber algumas reações de estranhamento por parte das pessoas próximas e dos profissionais da área (sejam eles da área da saúde, operadores de direito, profissionais da rede de proteção, etc). Diante de vítimas que não exteriorizam o sofrimento ou que apresentam uma narrativa destituída de afetos, algumas pessoas podem colocar em xeque o relato da vítima. Em alguns casos, até mesmo expressam “ela não parece que foi vítima de violência”, “achei o relato estranho, nem parece que ela estava traumatizada”.
Com relação a esse tipo de dúvida, vale destacar dois pontos. Em primeiro lugar, os impactos e consequências do abuso sexual são bastante particulares e variam de pessoa para pessoa. Cada vítima irá vivenciar aquele evento de uma forma única, podendo apresentar prejuízos e consequências mais ou menos graves. Os danos às vítimas variam de acordo com características da violência, como a gravidade, duração, utilização de força física, relação com o agressor etc; também com as caraterísticas pessoais da vítima, tais como sexo, idade, funcionamento psicológico anterior ao evento, antecendentes psicopatológicos, resiliência, etc. e com as consequências sociais após a revelação da violência (apoio de amigos e familiares, por exemplo).
Desse modo, é possível que uma vítima apresente, como seu modo de funcionamento psicológico para lidar com eventos traumáticos, justamente um relato indiferente, aparentemente neutro, sem expressão de afetos. Algumas pessoas desenvolvem modos defensivos de lidar com situações difíceis e traumáticas, de forma que, exteriormente, podem se portar como pessoas fortes e racionais, supostamente não afetadas pelo que lhes aconteceu. Além disso, outras pessoas podem vivenciar situações de violência sexual e, de fato, serem pouco afetadas (ao menos em curto prazo) por esses episódios. Nesses casos, o relato da vítima pode parecer “frio” ou racional ao ouvinte externo.
Em segundo lugar, o processo de investigação de situações de violência sexual podem envolver várias etapas, muitas delas difíceis para a vítima. Apesar da existência de uma legislação que busca proteger as vítimas de desgastes e exposições, comumente, o processo pós denúncia envolve exames, depoimentos e relatos diversos sobre o evento ocorrido. Além disso, é usual que a vítima tenha que lidar com questionamentos, reações e preocupações de familiares e pessoas que lhe são próximas. Diante dessas circunstâncias, algumas vítimas podem adotar uma forma de narrativa neutra, como meio para enfrentar as várias etapas de evocação dessas lembranças desagradáveis. Ou seja, do mesmo modo que algumas vítimas irão demonstrar grande sofrimento a cada vez que a experiência da violência for evocada, outras podem, por exemplo, “ligar o modo automático” como mecanismo de autoproteção.
Nesse sentido, é importante ressaltar que não existe relação direta entre veracidade de um relato e quantidade de emoção ou sofrimento exteriorizado pela vítima. Cada pessoa tem a sua singularidade e irá lidar com eventos traumáticos (incluindo ter que relatar esses fatos para outras pessoas) de modo único, pessoal, e esse modo deve encontrar validação por parte de quem escuta.
Silvia Pereira Guimarães
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