3 de novembro de 2021Comments are off for this post.

A vítima não chorou. Será que o que o relato é verdadeiro?

O abuso sexual de crianças e adolescentes é um tipo de violência grave, que tem impactos diversos sobre a vítima. Socialmente, é um crime cuja natureza causa repulsa e horror, e facilmente mobiliza as pessoas que escutam relatos sobre esse tipo de vitimização. 

Por se tratar de algo grave, comumente, as pessoas criam expectativas sobre aquilo que se espera de uma vítima de violência sexual. É corriqueiro que as pessoas desenvolvam crenças de que uma criança ou adolescente abusado(a), ao falar sobre o que vivenciou, irá chorar, se emocionar, se constranger e demonstrar grande sofrimento. Apesar de ser uma perspectiva socialmente comum e de fato ocorrer em muitos casos, nem sempre a vítima se comporta segundo esse padrão. 

Nessas situações de quebra de expectativas, é possível perceber algumas reações de estranhamento por parte das pessoas próximas e dos profissionais da área (sejam eles da área da saúde, operadores de direito, profissionais da rede de proteção, etc). Diante de vítimas que não exteriorizam o sofrimento ou que apresentam uma narrativa destituída de afetos, algumas pessoas podem colocar em xeque o relato da vítima. Em alguns casos, até mesmo expressam “ela não parece que foi vítima de violência”, “achei o relato estranho, nem parece que ela estava traumatizada”. 

Com relação a esse tipo de dúvida, vale destacar dois pontos. Em primeiro lugar, os impactos e consequências do abuso sexual são bastante particulares e variam de pessoa para pessoa. Cada vítima irá vivenciar aquele evento de uma forma única, podendo apresentar prejuízos e consequências mais ou menos graves. Os danos às vítimas variam de acordo com características da violência, como a gravidade, duração, utilização de força física, relação com o agressor etc; também com as caraterísticas pessoais da vítima, tais como sexo, idade, funcionamento psicológico anterior ao evento, antecendentes psicopatológicos, resiliência, etc. e com as consequências sociais após a revelação da violência (apoio de amigos e familiares, por exemplo).

Desse modo, é possível que uma vítima apresente, como seu modo de funcionamento psicológico para lidar com eventos traumáticos, justamente um relato indiferente, aparentemente neutro, sem expressão de afetos. Algumas pessoas desenvolvem modos defensivos de lidar com situações difíceis e traumáticas, de forma que, exteriormente, podem se portar como pessoas fortes e racionais, supostamente não afetadas pelo que lhes aconteceu. Além disso, outras pessoas podem vivenciar situações de violência sexual e, de fato, serem pouco afetadas (ao menos em curto prazo) por esses episódios. Nesses casos, o relato da vítima pode parecer “frio” ou racional ao ouvinte externo.  

Em segundo lugar, o processo de investigação de situações de violência sexual podem envolver várias etapas, muitas delas difíceis para a vítima. Apesar da existência de uma legislação que busca proteger as vítimas de desgastes e exposições, comumente, o processo pós denúncia envolve exames, depoimentos e relatos diversos sobre o evento ocorrido. Além disso, é usual que a vítima tenha que lidar com questionamentos, reações e preocupações de familiares e pessoas que lhe são próximas. Diante dessas circunstâncias, algumas vítimas podem adotar uma forma de narrativa neutra, como meio para enfrentar as várias etapas de evocação dessas lembranças desagradáveis. Ou seja, do mesmo modo que algumas vítimas irão demonstrar grande sofrimento a cada vez que a experiência da violência for evocada, outras podem, por exemplo, “ligar o modo automático” como mecanismo de autoproteção.  

Nesse sentido, é importante ressaltar que não existe relação direta entre veracidade de um relato e quantidade de emoção ou sofrimento exteriorizado pela vítima. Cada pessoa tem a sua singularidade e irá lidar com eventos traumáticos (incluindo ter que relatar esses fatos para outras pessoas) de modo único, pessoal, e esse modo deve encontrar validação por parte de quem escuta.

Silvia Pereira Guimarães

20 de outubro de 2021Comments are off for this post.

ABUSO SEXUAL EM PÚBLICO: isso acontece?

Parece impossível acreditar, mas há casos em que os abusadores sexuais de crianças e adolescentes são tão ousados que cometem esse crime mesmo na presença de outras pessoas, mesmo com outros adultos por perto.

Sobre esse assunto, vale lembrar que o abuso pode ocorrer sem contato físico e, nessa condição, é bem fácil que passe despercebido ainda que exista um grupo de pessoas reunidos no mesmo local. Por exemplo, o abusador pode falar obscenidades para uma criança ou sussurrar maliciosamente para um adolescente acerca de seu corpo e, se ninguém ouvir a conversa, acha que é uma interação inocente. Uma outra forma de agir, seria chamando a vítima para ver conteúdo pornográfico em seu celular, sentados de um jeito em que mais ninguém pudesse ver o que se passa na tela.

Abusos com contato físico também acontecem quando há outras pessoas próximas. Há agressores que conseguem tocar uma criança ou adolescente por baixo de um cobertor ou por trás de um móvel, enquanto alguém sai rapidamente do cômodo para ir ao banheiro ou quando os demais estão ocupados com uma tarefa, preparando uma refeição ou jogando cartas, por exemplo. Talvez você não se lembre, mas há algum tempo circulou um vídeo sobre isso, em que uma família estava reunida em uma lanchonete e um dos homens do grupo tinha uma menina em seu colo, sendo que ele manipulava a vagina da criança por baixo da saia, enquanto interagia com as demais pessoas. Na mesa, ninguém percebeu e a criança não demonstrou ter recursos para reagir, de forma que foram os demais frequentadores do local que alertaram sobre o abuso.

Outras situações podem ser criadas pelos agressores a partir de enganação da vítima ou das pessoas por perto. Nesses casos, alguns toques indevidos podem ser apresentados como uma brincadeira, como tocar o genital da criança enquanto a cumprimenta ou fazer cócegas nela de forma a tocar em seus seios. Outros desses toques inapropriados são realizados pelos abusadores de modo a parecerem um acidente, como quando um adulto esbarra propositalmente em alguma coisa, dando um jeitinho de encostar no bumbum da criança enquanto busca se reequilibrar. Tudo isso o agressor poderia fazer do lado do pai ou da mãe da vítima e, quem iria dizer que houve má intenção dele? 

Quando te contamos essas coisas, a ideia não é te deixar desconfiado de todas as pessoas ou super preocupado com os riscos. Recomendamos que sejam vividos bons momentos com familiares e amigos, inclusive, porque isso é positivo no desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. O objetivo aqui é de te colocar mais atento e preparado sobre uma dificuldade real. Se você conhece o problema, está mais preparado para enfrentá-lo e seus filhos estão mais seguros. Lembre-se: conhecimento é proteção!

Liliane Domingos Martins

22 de setembro de 2021Comments are off for this post.

O que fazer e não fazer quando uma criança ou adolescente conta que foi vítima de um abuso sexual

Se em algum momento você se deparar com uma situação em que uma criança ou adolescente conta que foi vítima de um abuso sexual, existem alguns cuidados importantes a serem observados.

Em primeiro lugar, saiba que falar sobre um abuso sexual costuma ser muito desconfortável para a vítima, pois envolve sentimentos de vergonha, culpa e medo. Desse modo, o adulto deve buscar oferecer uma escuta atenciosa e acolhedora, deixando que a criança ou adolescente relate livremente, com suas próprias palavras, o que aconteceu. É fundamental levar em consideração o estágio de desenvolvimento da vítima, que envolve um curso próprio de linguagem e de memória. Crianças possuem uma forma de lembrar as coisas que não é linear, por isso, tendem a apresentar relatos fragmentados, sem sequência temporal e pouco detalhados. O mesmo pode ocorrer com alguns adolescentes.

Cabe ao adulto não fazer “um interrogatório”, com perguntas persistentes sobre o assunto. Por mais que as emoções sejam fortes e surjam muitas perguntas, é importante não duvidar ou desacreditar a fala da criança ou adolescente. Perguntas repetitivas contaminam a fala da vítima e transmitem a ideia de desconfiança sobre o que está sendo relatado.

Durante essa conversa difícil, os momentos de silêncio e de choro devem ser respeitados. Além disso, perguntas e afirmações do tipo: “Por que você não me contou isso antes?”, “Por que você ficava perto de Fulano?”, “Eu te falei que você não devia andar com Cicrano”, “Você devia ter gritado, corrido...”, devem ser evitadas. Esse tipo de observação não traz nenhum benefício e aumenta ainda mais o sentimento de culpa da vítima.

Por fim, quando estiver conversando com uma criança ou adolescente vítima, não faça promessas que você não poderá cumprir. Não diga, por exemplo, “Pode me contar, não vou contar pra ninguém”. Isso não é verdade, uma vez que você terá que tomar providências para proteger a vítima e isso envolve relatar o que aconteceu. Fazer esse tipo de promessa que não pode ser cumprida pode fazer com que a criança/adolescente se sinta enganada ou traída por alguém em quem ela confiou.  

Silvia Pereira Guimarães

25 de agosto de 2021Comments are off for this post.

Entre a culpa e a responsabilidade

É muito recorrente que vítimas de abuso sexual relatem sentir culpa pela violência que viveram. Esse sentimento, tão presente e forte, pode até mesmo impedir que muitas delas tomem coragem para colocar limites no abuso ou para revelarem a alguém sobre essa situação. 

Quando falamos em culpa, devemos levar em conta que ela compreende dois aspectos. Uma coisa é a culpa no sentido legal do termo, que se refere ao componente de responsabilidade pela agressão. Outra coisa é a culpa no sentido psicológico, expressa pelo afeto que surge a partir da interpretação particular da vítima sobre a experiência abusiva.

Feita essa diferenciação, cabe ressaltar que, em todas as situações de assédio, a culpa, no seu sentido legal, é sempre do agressor. Isso quer dizer que, em nenhuma hipótese, a vítima pode ser responsabilizada pela violência que sofreu. Isso porque a culpa, enquanto ligada à responsabilidade pela violência, é obviamente de quem comete o ato.

Infelizmente, isso nem sempre fica claro e é comum que quem sofreu a agressão seja responsabilizado pela própria vitimização, em razão de seus hábitos, comportamentos ou do modo de se vestir. Se soma a esse erro a ideia equivocada de que a vítima pode ter consentido com o abuso de alguma forma, como nos casos em que não conseguiu esboçar reação. 

No que se refere à culpa que muitas vítimas experimentam, entende-se que depende de aspectos individuais e pode se originar por inúmeras causas. Embora não tenha responsabilidade legal pelo abuso, a vítima pode sentir-se culpada, por exemplo, por manter afeto ou proximidade com o agressor. Pode ainda sentir-se mal por não ter percebido o caráter perverso da interação a tempo de se proteger ou por ter tido alguma sensação fisicamente agradável durante o abuso, a despeito do desconforto emocional que a situação lhe causou.

Vemos que, em muitos casos, esse tipo de culpa nasce da ideia de que seria possível fazer as coisas de forma totalmente diferente. Olhando em retrospectiva, a pessoa se imagina capaz de estar mais alerta, de reagir de outro modo e de se autoproteger. É preciso entender que tais hipóteses partem de uma análise posterior, feita com elementos que a pessoa não tinha antes da agressão e, nesse sentido, constituem uma fantasia que não seria viável na prática. 

Além disso, nem sempre o abuso envolve violência física e muitos agressores investem seus recursos em um longo processo de aliciamento, a partir do qual identificam os pontos fracos de seu alvo, bem como as condições mais favoráveis para agir. Diante disso, podem se mostrar extremamente gentis e amáveis, carinhosos e companheiros, atitude que cria um vínculo de confiança, diminui a resistência da vítima e confunde sua percepção, possibilitando a conclusão do ato abusivo.

É importante saber que a culpa sentida pela vítima não só amplifica seu sofrimento, mas também dificulta a elaboração do trauma gerado pela experiência abusiva. Esse sentimento merece o cuidado profissional e pode ser devidamente trabalhado dentro de um processo psicoterapêutico. 

No que diz respeito à culpa por parte do agressor, cabe a devida punição legal, a partir da qual ele pode quitar sua dívida com a sociedade.

Juliana Borges Naves

31 de março de 2021Comments are off for this post.

A sexualidade infantil

O tema “sexualidade infantil” é considerado um tabu em nossa sociedade, o que torna esse assunto algo difícil de ser abordado e conversado abertamente. De modo geral, os pais também trazem consigo uma noção de sexualidade como sendo relacionado a algo proibido, constrangedor, sujo, cheio de vergonha. Tal noção está ligada à educação que eles próprios receberam de seus progenitores e que, gradativamente, vão repassando aos filhos. Se qualquer questão relacionada ao corpo ou à nudez da criança gera uma reação de repressão ou excessiva vergonha, a criança vai internalizando essas noções e associando a sexualidade a algo que não se fala, que se esconde, algo negativo etc. 

Nesse mesmo sentido, quando os pais têm uma visão mais natural da sexualidade e do corpo, transmitem essa mesma concepção para seus filhos. Isso possibilita que a criança construa uma melhor relação com o próprio corpo e com a sexualidade, o que, em um sentido mais amplo, auxilia na prevenção de abusos. 

Quando a sexualidade é tratada dentro da família como um dos aspectos naturais da vida, a criança se sente livre e segura para perguntar aos pais aquilo que tem dúvida e os pais se sentem confiantes para conversar e orientar de forma adequada com seus filhos. Dentre essas orientações, estão aquelas relacionadas à consentimento, limites do próprio corpo, os nomes das partes íntimas, toques apropriados e toques inapropriados, reconhecimento de sensação de desconforto etc. 

É preciso entender que a sexualidade infantil é muito diferente da sexualidade adulta. Para a criança, os órgãos genitais não são o centro do prazer sexual como acontece com os adultos. Nos primeiros anos de vida, a criança está descobrindo o próprio corpo, a funcionalidade de cada parte e as sensações relacionadas a elas. Assim, a criança explora seu corpo, corre, rodopia, percebe que sente cócegas em algumas partes e sensações boas em outras. Para a criança, os genitais não são uma zona sexual ou erótica, essa concepção ainda não foi construída. 

Portanto, quando falamos de sexualidade infantil, estamos tratando de uma concepção muito mais ampla, que envolve as experiências sensoriais e corporais como um todo; a forma como percebemos e nos sentimos em relação ao próprio corpo; tudo o que se refere a ser homem e ser mulher; a forma como nos relacionamos com as pessoas que gostamos; o desenvolvimento e as mudanças corporais; e a reprodução humana.  

As crianças são naturalmente curiosas e expressam curiosidade também pelas questões da sexualidade, assim como fazem em diversas áreas da vida. Cabe aos pais ou responsáveis influenciá-las de forma adequada para a construção de uma sexualidade saudável. Para isso, é importante orientar os pequenos sem envergonhá-los ou repreendê-los por estarem fazendo uma pergunta. Crianças precisam ser ensinadas de forma respeitosa e em linguagem adequada, sem que se sintam culpadas por uma curiosidade ou exploração sexual normal.  

Uma boa forma de fazer isso é internalizando uma concepção geral de sexualidade infantil como algo natural da vida, obtendo informações sobre o que é esperado em cada etapa do desenvolvimento e conhecendo os comportamentos sexuais típicos, ou seja, considerados “normais” ou comuns à maioria das crianças. Essa postura auxilia os pais a lidarem com a sexualidade dos filhos de uma forma mais tranquila, assumindo posturas mais saudáveis e efetivamente protetivas. 

Silvia Pereira Guimarães

17 de março de 2021Comments are off for this post.

Profissionais Acolhendo Relatos de Abuso: as diferenças entre escuta especializada e depoimento especial

A legislação brasileira teve um importante avanço recente no que se refere ao acolhimento de relatos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Até então, eram relativamente frequentes os episódios de violência institucional, nos quais profissionais mal preparados acabavam por ampliar o sofrimento das vítimas com pressões, preconceitos e outras condutas inadequadas, que comprometiam a confiabilidade das narrativas. Ante a esses problemas, a Lei N° 13.431/17, que vem sendo conhecida como Lei da Escuta Protegida, definiu sobre estratégias de abordagem que devem ser observadas por todos aqueles que trabalham em contextos nos quais são responsáveis por ouvir crianças ou adolescentes envolvidos em situações abusivas. Dentre essas estratégias, vamos aqui apresentar sobre a escuta especializada e o depoimento especial, indicando as diferenças entre ambas.

A escuta especializada é o procedimento que deve ser realizado mais frequentemente, já que é indicada para praticamente todo profissional que compõe a rede de proteção, sejam conselheiros tutelares, professores, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc. O princípio fundamental da escuta especializada envolve o livre relato, ou seja, a estimulação da criança ou adolescente para que fale sobre os episódios de violência com o mínimo de intervenção e, quando algum esclarecimento for necessário, que seja feito por meio de perguntas abertas e não diretivas. Além disso, é essencial ter claro que a escuta especializada é limitada em sua coleta de dados e não visa a produção de provas, o que significa que tal abordagem deve abranger apenas o estritamente necessário para o cumprimento de sua finalidade, que é tão somente de acolhimento, provimento de cuidados e encaminhamento.

Quanto ao depoimento especial, é comum que, equivocadamente, alguns profissionais documentem ter usado esse tipo de procedimento para ouvir uma criança ou adolescente. A ideia, provavelmente, é de garantir que cuidou-se contra práticas revitimizantes ou para evitar a sugestionabilidade do discurso da vítima, mas, tendo em vista que é essencial sempre estar atento a tais questões, essa não é a especificidade do depoimento especial. O depoimento especial é, na verdade, um modelo de oitiva de crianças e adolescentes exclusivo a autoridades policiais ou judiciárias. Além disso, o depoimento especial tem uma formatação bastante particular, de modo que, mesmo nos órgãos com essas competências, certas características devem ser resguardadas para que a entrevista com a vítima receba esse nome. 

De modo geral, é preciso saber que o procedimento de depoimento especial tem dois objetivos principais. O primeiro deles, é o de evitar que a vítima seja repetidamente ouvida sobre um tema tão difícil como a violência sexual. Tendo isso em vista, a sessão é gravada em áudio e vídeo, o que permite que outros profissionais tenham acesso às informações prestadas, sem a necessidade de acionar novamente aquela criança ou adolescente. Nessa gravação está contido o registro da conversa realizada entre a vítima e um expert, que faz uso de um protocolo de entrevista forense e que é habilitado para mediar as perguntas de uma sala de audiência para a criança ou adolescente, adaptando a linguagem para o nível de desenvolvimento dela. Ambos encontram-se isolados em um recinto separado, mas a vítima está ciente de que aquele encontro está sendo acompanhado por vários outros interessados. 

Isso conduz ao segundo objetivo do depoimento especial, que, dentro do rito processual, visa garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório por parte do investigado. Para tal, a oitiva precisa ser realizada conforme uma audiência judicial, com a presença de juiz, promotor, advogados e aquele que foi apontado como responsável pela violência. Esses atores assistem à entrevista com a vítima enquanto ela acontece e podem encaminhar seus questionamentos, isso em conformidade com o que foi mencionado logo acima.

Além da Lei N° 13.431/17, o Decreto N° 9.603/2018 instituiu princípios ainda mais específicos para a realização da escuta especializada e do depoimento especial. Os dois documentos destacam-se como dispositivos históricos, concentrados no melhor interesse de crianças e adolescentes e que devem ser conhecidos por todo profissional que lida com esse público em suas rotinas de trabalho. Sabemos que pode ser bem difícil receber relatos de violência, principalmente por parte de nossos pequenos, mas, quando você está ciente sobre seu papel nisso e sobre como conduzir a situação, é provável que essa tarefa seja um pouco menos intimidante. Fique atento à legislação!

Liliane Domingos Martins

3 de março de 2021Comments are off for this post.

Abusos sexuais cometidos por mulheres

É complicado aceitar a ideia de que mulheres são capazes de abusar de crianças e adolescentes. De maneira geral, a condição feminina é bastante idealizada na nossa cultura e as mulheres são tidas como frágeis, naturalmente maternais e amorosas. Consequentemente, não são consideradas suspeitas de atos de violência sexual, especialmente em relação a crianças com quem têm vínculo familiar ou de cuidado. 

Embora esse seja um assunto pouco comentado, parte significativa dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes é cometida por mulheres. As estatísticas não são precisas, mas estima-se que de 2 a 25% das ocorrências de abuso infantojuvenil envolvam agressoras do sexo feminino. Considerando os casos que chegam a ser denunciados, a prevalência gira em torno de 5%. 

Como é possível imaginar, uma dificuldade ao lidar com o problema é que esses são abusos mais difíceis de detectar. Como mães e cuidadoras têm acesso constante ao corpo da criança nos momentos de higiene, por exemplo, toques abusivos, inseridos nesse contexto, podem passar despercebidos por anos. 

Assim como ocorre com os  agressores do sexo masculino, não há um perfil específico para as autoras de violência sexual. Elas compõem um grupo heterogêneo, com características e motivações variadas para a prática do abuso.

Sobre as agressoras que abusam dos próprios filhos, há as que agem de forma sedutora, estimulando sexualmente a criança sem usar força ou causar sofrimento físico. Nesses casos, a vítima muitas vezes demora a compreender o caráter abusivo da relação, já que a violência sexual se mistura com atos de cuidado e carinho, levando a criança a acreditar que aquela é uma forma natural de interação.

Mas há também as mães que agem de forma cruel e sádica, provocando dor ou humilhação e recorrendo a ameaças para manter a situação em segredo. Nesses casos, tendem a apresentar baixo nível de escolaridade, dificuldade em estabelecer relacionamentos sociais adequados, dependência química ou transtornos mentais.

Temos, ainda, mulheres que cometem violência sexual inicialmente coagidas pelos parceiros mas, com o tempo, passam a abusar de crianças por iniciativa própria.

No que se refere à violência sexual de mulheres contra adolescentes, há aquelas que romantizam o envolvimento e se tornam amantes de rapazes bem mais novos. Essa é uma situação complexa se levarmos em consideração os ideais ligados à masculinidade, que incentivam o homem a corresponder sempre de forma viril quando provocado por uma mulher. Nesse contexto, muitos jovens podem se sentir acuados e obrigados a aceitar o abuso por pressão social. Na mesma lógica, dificilmente serão capazes de admitir abertamente seu sofrimento ou denunciar a situação sexualmente abusiva. 

Juliana Borges Naves

17 de fevereiro de 2021Comments are off for this post.

As consequências do abuso sexual

Abuso sexual não produz os mesmos efeitos em todas as pessoas. As crianças e adolescentes vitimizados podem reagir ou vivenciar a violência sexual de maneiras variadas. Assim, alguns expressarão o seu sofrimento de forma muito evidente, enquanto outros não o farão.

Dentre as consequências do abuso sexual, podemos apontar a possibilidade de danos a curto, médio e longo prazos nas mais diversas áreas da vida do sujeito. Trata-se de um evento que predispõe ao aparecimento de psicopatologias e de prejuízos nas esferas psicológica, social e afetiva. São alguns exemplos:

- Consequências físicas: gravidez; DSTs; dor, inchaço ou sangramento na região genital; hematomas ou lesões corporais, em razão do uso de força física; dentre outros.

- Consequências psicológicas e/ou psicossomáticas: mudanças de comportamentos ou vocabulário; agressividade; condutas sexuais inadequadas e/ou incompatíveis com a idade; dificuldades nos relacionamentos interpessoais; dificuldades escolares; distúrbios alimentares; distúrbios afetivos (apatia, depressão, desinteresse pelas brincadeiras, crises de choro, sentimento de culpa, vergonha, autodesvalorização, baixa autoestima); dificuldades de sono; uso de drogas; tentativas de suicídio; queixas psicossomáticas; frequentes fugas de casa; transtorno de estresse pós traumático, dentre outros.

Além disso, as consequências também podem variar de acordo com a idade da vítima, a duração do abuso, o grau de violência ou ameaça de violência empregada; o grau de proximidade entre o agressor e a vítima; resiliência; presença de apoio familiar e suporte emocional; consequências da revelação; garantia de proteção, etc. 

Uma vez que cada pessoa responde a estímulos de forma singular, a violência sexual não produz o mesmo resultado sobre todas as crianças e adolescentes submetidos a ela. Apesar das consequências negativas para o funcionamento psicológico, social, cognitivo e afetivo do sujeito, não existe uma “síndrome”, “transtorno” ou “sintoma” específico ou exclusivo relacionado a esse tipo de vivência. Do mesmo modo, existe também a possibilidade de vitimização com ausência de sintomas. 

Portanto, cada caso é um caso. O fundamental é que a criança ou adolescente encontre o apoio e ajuda necessários, de modo a evitar que as consequências dessa violência marquem cruelmente a sua vida no presente e no futuro.

Silvia Pereira Guimarães

27 de janeiro de 2021Comments are off for this post.

Afastando a vítima do agressor

Um dos cuidados mais essenciais ante à confirmação de um abuso sexual deve ser garantir que a vítima seja posta em segurança, a salvo de novos episódios de violência. O objetivo principal desse tipo de medida é o de resguardá-la, assegurando a devida atenção aos seus direitos básicos e impedindo que continue prejudicada quanto a seu bem-estar e desenvolvimento.

A literatura científica sinaliza que abusos que se repetem ao longo do tempo tendem a ser mais impactantes e desorganizadores para aquele que sofre a violência do que as situações que envolvem episódios isolados de vitimização. Além disso, à medida que os episódios se repetem, se tornam gradativamente piores, com condutas cada vez mais invasivas. Em razão disso, afastar a vítima do agressor pode ser algo necessário. 

Considerando a variabilidade dos casos de violência sexual, comumente esse afastamento vai ser sentido pela criança ou pelo adolescente como um alívio, especialmente quando a relação com o abusador é mais traumática. Em outras situações, principalmente nos casos que envolvem abusos intrafamiliares, o agressor pode ser uma figura de apego e referência para a vítima, sendo que o distanciamento em relação a ele deve ser bem analisado e conduzido para não representar um novo abalo emocional.

É nesse ponto que a rede de proteção assume um papel fundamental. É ela que, com profissionais capacitados, avalia o contexto da denúncia para evitar que injustiças sejam cometidas no processo, já que tais questões podem interferir irreversivelmente no vínculo entre a criança e a pessoa apontada como abusiva. A partir dessa verificação, cabe também aos órgãos desse sistema indicar o que é mais recomendável frente às circunstâncias postas, definir as estratégias protetivas mais pertinentes, orientar os familiares e promover apoio psicológico a todos os envolvidos.

Liliane Domingos Martins

20 de janeiro de 2021Comments are off for this post.

O mito da criança sedutora

Diante de uma notícia de abuso sexual de criança ou adolescente, não é raro surgirem comentários que apontam a vítima como sendo a responsável por aquele episódio abusivo em razão de ter “seduzido” ou “provocado” o adulto. Nesse sentido, alguns pontos precisam ser esclarecidos sobre esse assunto. 

Crianças e adolescentes estão em plena vivência de um longo processo de desenvolvimento da sexualidade. Nesse percurso, experimentam prazer sensorial em seu corpo, incluindo na região genital. Este prazer sexual está vinculado às descobertas do corpo e a se sentir bem com ele. A faculdade de sentir prazer é parte integrante da sexualidade infantil, contudo, ainda não existe uma maturidade, nem física nem psicológica, que possibilite interações sexuais como fazem os adultos. Essa imaturidade impede que crianças e adolescentes sejam considerados capazes de tomar decisões embasadas e responsáveis no campo da sexualidade.  

A crença de que a vítima seduziu e provocou o abuso muitas vezes é construída a partir de projeções dos próprios pensamentos sexuais do adulto na criança, atribuindo a ela estes conteúdos. Em outros casos, podem se tratar de distorções cognitivas, que são crenças disfuncionais e desadaptadas que podem estar relacionadas à visão que o indivíduo tem sobre as outras pessoas, sobre si mesmo, sobre o mundo etc. Tais distorções estão na base de pensamentos como: “a criança que provocou”, “ela que me fez fazer isso”, “ela gostou do abuso”. 

É preciso deixar claro que a responsabilidade de qualquer abuso sexual é sempre do adulto, ainda que uma criança, pré-adolescente ou adolescente demonstre ou declare que deseja ter algum tipo de contato sexual com ele. Além disso, caso uma situação como essa aconteça, um sinal de alerta deve ser ligado, pois pode indicar a existência de um abuso prévio. Uma criança vitimizada sexualmente pode agir com outros adultos de forma sedutora. Nesses casos, as suas relações interpessoais podem estar perturbadas, bem como sua capacidade de expressar afeto de uma forma não sexual. 

Em nenhuma hipótese o comportamento supostamente sedutor torna crianças e adolescentes responsáveis pelo comportamento do adulto de satisfação dos próprios desejos sexuais. Muitas vezes, por trás daquele comportamento interpretado como “sexual”, existe uma necessidade de cuidado emocional somada à imaturidade psíquica típica da idade. Portanto, cabe ao adulto estabelecer os limites apropriados no relacionamento com os mais jovens.

Silvia Pereira Guimarães