A legislação brasileira teve um importante avanço recente no que se refere ao acolhimento de relatos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Até então, eram relativamente frequentes os episódios de violência institucional, nos quais profissionais mal preparados acabavam por ampliar o sofrimento das vítimas com pressões, preconceitos e outras condutas inadequadas, que comprometiam a confiabilidade das narrativas. Ante a esses problemas, a Lei N° 13.431/17, que vem sendo conhecida como Lei da Escuta Protegida, definiu sobre estratégias de abordagem que devem ser observadas por todos aqueles que trabalham em contextos nos quais são responsáveis por ouvir crianças ou adolescentes envolvidos em situações abusivas. Dentre essas estratégias, vamos aqui apresentar sobre a escuta especializada e o depoimento especial, indicando as diferenças entre ambas.
A escuta especializada é o procedimento que deve ser realizado mais frequentemente, já que é indicada para praticamente todo profissional que compõe a rede de proteção, sejam conselheiros tutelares, professores, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc. O princípio fundamental da escuta especializada envolve o livre relato, ou seja, a estimulação da criança ou adolescente para que fale sobre os episódios de violência com o mínimo de intervenção e, quando algum esclarecimento for necessário, que seja feito por meio de perguntas abertas e não diretivas. Além disso, é essencial ter claro que a escuta especializada é limitada em sua coleta de dados e não visa a produção de provas, o que significa que tal abordagem deve abranger apenas o estritamente necessário para o cumprimento de sua finalidade, que é tão somente de acolhimento, provimento de cuidados e encaminhamento.
Quanto ao depoimento especial, é comum que, equivocadamente, alguns profissionais documentem ter usado esse tipo de procedimento para ouvir uma criança ou adolescente. A ideia, provavelmente, é de garantir que cuidou-se contra práticas revitimizantes ou para evitar a sugestionabilidade do discurso da vítima, mas, tendo em vista que é essencial sempre estar atento a tais questões, essa não é a especificidade do depoimento especial. O depoimento especial é, na verdade, um modelo de oitiva de crianças e adolescentes exclusivo a autoridades policiais ou judiciárias. Além disso, o depoimento especial tem uma formatação bastante particular, de modo que, mesmo nos órgãos com essas competências, certas características devem ser resguardadas para que a entrevista com a vítima receba esse nome.
De modo geral, é preciso saber que o procedimento de depoimento especial tem dois objetivos principais. O primeiro deles, é o de evitar que a vítima seja repetidamente ouvida sobre um tema tão difícil como a violência sexual. Tendo isso em vista, a sessão é gravada em áudio e vídeo, o que permite que outros profissionais tenham acesso às informações prestadas, sem a necessidade de acionar novamente aquela criança ou adolescente. Nessa gravação está contido o registro da conversa realizada entre a vítima e um expert, que faz uso de um protocolo de entrevista forense e que é habilitado para mediar as perguntas de uma sala de audiência para a criança ou adolescente, adaptando a linguagem para o nível de desenvolvimento dela. Ambos encontram-se isolados em um recinto separado, mas a vítima está ciente de que aquele encontro está sendo acompanhado por vários outros interessados.
Isso conduz ao segundo objetivo do depoimento especial, que, dentro do rito processual, visa garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório por parte do investigado. Para tal, a oitiva precisa ser realizada conforme uma audiência judicial, com a presença de juiz, promotor, advogados e aquele que foi apontado como responsável pela violência. Esses atores assistem à entrevista com a vítima enquanto ela acontece e podem encaminhar seus questionamentos, isso em conformidade com o que foi mencionado logo acima.
Além da Lei N° 13.431/17, o Decreto N° 9.603/2018 instituiu princípios ainda mais específicos para a realização da escuta especializada e do depoimento especial. Os dois documentos destacam-se como dispositivos históricos, concentrados no melhor interesse de crianças e adolescentes e que devem ser conhecidos por todo profissional que lida com esse público em suas rotinas de trabalho. Sabemos que pode ser bem difícil receber relatos de violência, principalmente por parte de nossos pequenos, mas, quando você está ciente sobre seu papel nisso e sobre como conduzir a situação, é provável que essa tarefa seja um pouco menos intimidante. Fique atento à legislação!
Liliane Domingos Martins