O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um tipo de crime que tende a se dar sem testemunhas e sem deixar marcas físicas que comprovem a violência. Assim, como é grande o desafio de constatar sua ocorrência, a palavra da vítima tem assumido destaque e tem sido considerada como elemento de prova. Trata-se de uma tendência internacional e que também vem sendo reforçada em nosso país.

Para que isso seja possível, uma recomendação importante é a de preservar o conteúdo da fala da criança/adolescente vitimizada, assim como acontece com as evidências de outros delitos. Em casos de assassinato, por exemplo, o ambiente é isolado, evitando adulterações da cena e maximizando a possibilidade de que se possa entender a dinâmica dos fatos que culminaram no homicídio, sua autoria, etc. Do mesmo modo que se faz nessas situações, portanto, é preciso pensar que, se o relato da vítima pode ser usado como prova, quem o acolhe é responsável por resguardá-lo.

Para resguardar uma revelação de abuso, a pessoa que escuta a vítima deve atentar para três pontos principais: ter cautela para não revitimizar a criança/adolescente, buscar ampliar o número de informações colhidas por meio do livre relato e fazer o registro de absolutamente tudo o que aconteceu na sessão.

Sobre o primeiro desses pontos, a ideia é garantir que a vítima receba o melhor acolhimento possível, eliminando seu confronto com pressões, preconceitos ou mitos sobre a violência. Lembrar a experiência abusiva e ter que falar sobre o assunto costuma ser algo bastante difícil, de forma que é imprescindível que aquele que se dispõe a ouvir a criança ou o adolescente seja cuidadoso quanto ao que diz nesse momento. Não faz sentido questionar a vítima sobre como ela deveria ter agido, a roupa que usava, o porquê de ter se comportado de determinada forma ou sobre sua incapacidade de reagir. O crime é de responsabilidade do agressor e tais indagações fazem parecer que o erro foi dela de alguma forma, implicando em sua menor disponibilidade para fazer o relato e aumentando seus sentimentos de ansiedade e de culpa.

O segundo ponto envolve o esforço por estimular a vítima a falar ao máximo sobre o que lhe aconteceu, mas de uma forma espontânea e livre. O papel do adulto que recebe o relato não é de investigar a situação e, sendo assim, ele não deve fazer perguntas diretivas à criança/adolescente. Seu papel é de acolher e entender o problema para, então, encaminhar aquele que passou pelo abuso aos serviços de atendimento mais adequados. Para tal, esse adulto pode incentivar a vítima a apresentar mais dados se valendo de expressões exploratórias ou de indagações que são classificadas como abertas, por exemplo: “me conta mais sobre isso”, “me conta tudo sobre isso”, “o que mais aconteceu?”, “e depois disso, o que houve?”, “como foi que essa situação aconteceu?”, etc.

O terceiro ponto desse processo exige que a pessoa que ouviu o relato faça o registro de todas as informações colhidas e observadas naquele momento. Devem ser anotados todos os dados oferecidos espontaneamente pela criança/adolescente como suas descrições da cena abusiva, sobre como foi abordada, em que local, data ou momento do dia, o que fazia, a roupa que usava, o diálogo travado entre o agressor e ela, suas sensações físicas, seus pensamentos e sentimentos naquela hora, sobre como reagiu, se sofreu ameaças, se recebeu presentes, etc. Absolutamente tudo o que foi dito pela vítima deve ser devidamente listado e com as mesmas palavras que ela utilizou. Além disso, é importante escrever também sobre como a criança se apresentou, as emoções que exteriorizou e sobre qualquer interferência ocorrida enquanto a escuta se dava. 

Essas medidas aqui apontadas são especialmente importantes na ocasião em que a vítima oferece seu primeiro relato sobre o abuso. Aquilo que a criança ou adolescente traz como parte da revelação, se acolhido por meio desses procedimentos, pode aumentar a confiança dela com as etapas subsequentes e minimizar a necessidade de que ela seja ouvida de forma repetida. Cabe a cada um ficar alerta sobre o assunto e se preparar com essas dicas para atuar sobre as questões indicadas.

Liliane Domingos Martins