Essa pergunta é muito comum, a tal ponto que o argumento de que o relato não passa de uma fantasia é frequentemente usado pelos advogados de defesa no âmbito jurídico. Nesse contexto, a incapacidade da vítima para apresentar um relato cronologicamente ordenado e detalhado sobre a vitimização é encarada por advogados e magistrados como um indício de que ela estaria mentindo ou fantasiando sobre a situação abusiva.

Tal entendimento parte do desconhecimento acerca de características fundamentais e típicas da infância, bem como das etapas de desenvolvimento do processo cognitivo e da aquisição da memória. Em razão disso, muitos adultos esperam que crianças tenham capacidades similares às suas, de forma que incoerências e incongruências são tomadas por indicativos de falta de veracidade.

No que se refere às habilidades da infância, entre 4 e 5 anos de idade, uma criança já é capaz de distinguir verdade de mentira, como também de mentir intencionalmente para, por exemplo, fugir de um castigo, obter recompensa, agradar alguém ou proteger figura significativa. 

Já a capacidade de imaginar, de lançar mão de ideias fantasiosas para interpretar ou relatar algum acontecimento, é bastante comum e recorrente na infância. A imaginação e o jogo simbólico são processos normais e essenciais para o desenvolvimento integrado das crianças e possibilita que elas internalizem situações do dia a dia ou elaborem vivências traumáticas. É por meio da brincadeira e da imaginação que uma criança passa da posição de objeto, que deve obediência aos pais, professores, irmãos ou a alguma outra criança, para o lugar de quem manda, de quem sabe, de quem determina as regras. É brincando que a criança pode mudar de papel e se distanciar temporariamente da condição de dependência e impotência que ela experimenta em diversos momentos. 

Dito isso, nos cabe fazer a mea culpa. Adultos também mentem, e muito. Pode-se dizer, considerando as estatísticas, que mentem bem mais que as crianças. Ademais, também fantasiam. Fazem planos diante de um jogo da mega sena, ensaiam conversas antes de um encontro e repassam inúmeras respostas que não deram quando confrontados, por vezes em voz alta. Nesse sentido, pedem das crianças a maturidade e coerência que nem mesmo têm.

Mas, voltando à pergunta inicial: Crianças mentem que foram abusadas?

Embora fantasiem, crianças não vivem em um mundo de fantasia e, por volta de três anos e meio, conseguem distinguir fatos concretos da imaginação. Além disso, costumam fantasiar com elementos que lhes são apresentados. Por conta disso, as brincadeiras giram em torno de situações habituais, de fatos que aconteceram na família ou de temas movidos por histórias imaginárias: personagens de livros, desenhos ou jogos. Considerando que cenas eróticas não fazem parte de vivências corriqueiras na infância, seria bastante atípico que uma criança relatasse uma situação sexualmente abusiva a partir da própria criatividade. Ainda que sejam capazes de fantasiar, a maioria das crianças não possui conhecimento ou percepção suficientes para ter o que são, em essência, fantasias sexuais adultas.

Aqui, cabe a ressalva de que uma criança pode ter contato com cenas eróticas de modo incidental, pela internet ou manipulando o celular dos responsáveis, por exemplo. Sendo assim, não necessariamente o relato de uma situação aparentemente sexual é produto do assédio de algum adulto. Vale esclarecer, entretanto, que expor intencionalmente uma criança ou adolescente a uma cena de conteúdo erótico, seja pessoalmente, seja em vídeo, configura sim violência sexual.

Sobre a mentira, é difícil entender que tipo de motivação levaria uma criança a inventar uma acusação de abuso contra alguém. Raramente uma criança mente sobre isso, a menos que esteja sob influência de um terceiro que visa algum benefício com a denúncia. Mesmo assim, quando consideramos o contexto de litígio e de divórcio, tem-se que apenas 6% das denúncias de violência sexual são inverídicas.

Nesse sentido, é mais comum uma criança usar a capacidade de mentir para 

encobrir uma violência que aconteceu com ela, seja por ameaças, por receio das consequências do relato ou pela necessidade de proteger um agressor com quem tem laços afetivos.

Juliana Borges Naves