30 de junho de 2021Comments are off for this post.

Privacidade x Segredo: o que é cada um

Privacidade e segredo são duas coisas bem diferentes. Ambos fazem parte da vida das pessoas, mas é importante entender a distinção entre eles quando se busca cuidar de crianças e adolescentes contra abusos sexuais. 

A privacidade refere-se a certas experiências que os filhos têm sozinhos, mas que os pais sabem a respeito. Por exemplo, a maior parte das pessoas prefere ter privacidade ao usar o banheiro, seja para tomar banho ou usar o sanitário. Essas são situações em que nossas partes íntimas estão expostas e, como sabemos, o ideal é que terceiros não toquem ou vejam essas áreas do corpo dos outros. Sendo assim, as crianças são estimuladas desde novas a serem independentes quanto aos hábitos de higiene, de forma a dispensarem ajuda e a garantirem a própria privacidade nesses momentos.

No desenvolvimento da sexualidade, a exploração dos próprios genitais pela criança, no sentido da curiosidade e da geração de sensações,  é outro hábito natural, com os quais os pais não precisam se chocar. Caso não identifiquem anormalidades nessa prática, devem dar espaço para esclarecer as dúvidas dos filhos sobre o assunto e, principalmente, orientá-los de que tal comportamento deve ser sempre privado. Isso significa que os toques da criança em seus órgãos genitais devem ser realizados em locais isolados e sem contato com outras pessoas. Elas não podem, assim, fazer isso na escola, na frente de colegas ou de qualquer um mais velho.

Dessa maneira, a privacidade é assumida como algo bom, que permite ao indivíduo se conhecer melhor, a aprender sobre seus limites e sobre a importância de que respeitem seu espaço pessoal e momentos mais particulares, tudo isso feito de forma segura. De modo oposto, o segredo não costuma ser algo positivo, já que  ele surge de situações em que as crianças e adolescentes estão amedrontados ou constrangidos demais para contar aos pais sobre o que se passou.

Crianças que temem seus genitores, que têm receio de apanhar ou de sofrerem castigos severos procuram guardar segredos de seus pais como meio de evitar tais punições. Do mesmo jeito, aquelas que não têm um diálogo próximo e fácil com os seus responsáveis podem se sentir desconfortáveis para esclarecer sobre situações que envolvam as próprias descobertas sexuais, as dúvidas quanto ao tema, ou mesmo, para comunicar sobre qualquer aproximação abusiva.

Nesses casos, o segredo representa uma ameaça à segurança das crianças ou adolescentes, pois eles ainda não têm capacidade suficiente para, sem ajuda, dimensionar os riscos de algumas circunstâncias a que são expostos. Os pais, por sua vez, quando desconhecem as situações vividas por seus filhos, não têm como avaliar os problemas que lhes acometem, de onde vêm ou o quanto são perigosos. Em consequência, também não conseguem tomar as providências necessárias para manter suas crianças mais protegidas quanto a essas experiências ruins. Tal quadro faz com que os infantes tornem-se alvos fáceis de pessoas mal intencionadas e que, inclusive, estimulam a manutenção de segredos em relação aos pais. Isso é algo frequente em episódios de violência sexual.

Participe ativamente da vida dos seus filhos, demonstre interesse pelo que fazem, converse com eles sobre atividades cotidianas e permitam também que tenham momentos a sós. Esse tipo de atitude fortalece a identidade e individualidade das crianças e adolescentes, e melhor ainda, fortalece os laços entre pais e filhos. Quando essa relação de proximidade, diálogo e confiança é construída, há menos espaço para segredos e é possível que todos permaneçam mais resguardados contra qualquer forma de violência.

Liliane Domingos Martins

23 de junho de 2021Comments are off for this post.

Comportamentos sexuais “normais” e “anormais” em crianças

Ao longo do desenvolvimento, crianças e adolescentes apresentarão comportamentos que expressam sua sexualidade ainda em desenvolvimento. Tratam-se de expressões de uma sexualidade infantil, bastante diferente daquelas observadas em adultos, e que estão relacionadas às descobertas referentes ao corpo (próprio e dos demais) e às sensações corporais de uma forma geral. 

Nesse sentido, a compreensão sobre o que é esperado em cada etapa do desenvolvimento infantil e quais são os comportamentos sexuais típicos, ou seja, considerados “normais” ou comuns à maioria das crianças, auxilia a pais e filhos lidarem com esse aspecto da vida de uma forma mais natural e tranquila. Além disso, tal conhecimento é fundamental para a identificação de condutas sexuais que fogem do esperado para aquela faixa etária e podem ser indicativos de algum tipo de abuso sexual. 

São exemplos de comportamentos sexuais típicos entre 0 e 4 anos de idade: auto-exploração; auto-estimulação; tocar os genitais; linguagem infantil para falar das partes do corpo; ter curiosidade em relação ao corpo de outras pessoas; exibir os genitais; interesse em atividades no banheiro; brincadeiras de faz-de-conta (“papai e mamãe”, “médico”) etc. Por outro lado, são comportamentos considerados atípicos e que devem chamar a atenção dos pais: usar linguagem sexualmente explícita; forçar o contato sexual com outras crianças; mostrar conhecimento sexual semelhante ao de um adulto; esfregar-se sexualmente em outras pessoas; tocar os genitais de maneira compulsiva, dentre outros. 

Já na faixa etária que vai de 5 a 12 anos de idade, são considerados comportamentos sexuais típicos: aumento das interações experimentais consensuais com outras crianças (no sentido de perceber diferenças e exercitar curiosidade); masturbar-se em particular (esporádico); beijo; toque; exibição; sentir-se enojada ou atraída pelo sexo oposto; fazer perguntas sobre menstruação, gravidez, comportamento sexual; falar mais sobre sexo; aumentar a linguagem sexual ou obscena; simular relações sexuais; relações sexuais digitais ou vaginais em pré-adolescentes, dentre outros. Entretanto, são considerados comportamentos sexuais atípicos nessas idades: masturbar-se em público ou de forma compulsiva; insistir em interações sexuais não consensuais com outras crianças; comportamento ou conhecimento sexual semelhante ao de um adulto; conhecer textura, sabor e cheiro de sêmen; relacionar-se com adultos e crianças de forma sexual, etc.   

Na faixa etária entre os 13 e 16 anos de idade, são exemplos de comportamentos sexuais típicos: fazer perguntas sobre relacionamento e comportamento sexual; usar linguagem sexual; masturbar-se em local privado; experimentação sexual e consensual com outros adolescentes de mesma idade; carícias; algumas vezes, relações sexuais consensuais etc. Todavia, são exemplos de comportamentos sexuais atípicos: masturbar-se em público; ter contato sexual com crianças bem mais novas; levar crianças bem mais novas para “lugares secretos” ou passar tempo incomum em sua companhia; mostrar material sexual para crianças mais novas; ver pornografia infantil na internet; expor os genitais para crianças mais novas; intimidar crianças a manter segredo, dentre outros. 

Condutas sexuais atípicas ou “anormais” em crianças e adolescentes devem sempre ser investigadas, uma vez que podem indicar que foram vítimas de um abuso sexual ou que estão abusando sexualmente de outras crianças. Sabemos que cada caso é um caso, mas, comportamentos sexuais que se mostram muito distantes daquilo que é esperado em determinada faixa etária e que tendem a ser persistentes são um importante sinal de alerta e devem ser foco de investigação.  

Silvia Pereira Guimarães

9 de junho de 2021Comments are off for this post.

Estatísticas do Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes

O abuso sexual de crianças e adolescentes é mais comum do que a maioria das pessoas imagina. Em um estudo global abrangendo 217 pesquisas realizadas entre os anos de 1980 a 2008, a conclusão foi de que a prevalência geral desse tipo de violência é de 11,8% na população. Além disso, os resultados detalham que o problema alcançou cerca de 18% das meninas e 7,6% dos meninos avaliados.    

No Brasil, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) registrou mais de 17 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2019. Dessas, 45% aconteceu na própria casa da vítima e em 40% o agressor era seu pai ou padrasto. Além disso, 82% das ocorrências foram contra meninas. 

A visibilidade sobre o problema vem crescendo consideravelmente. Segundo dados do UNICEF, entre 2011 e 2017, houve um aumento de 83% nas notificações de estupros contra crianças e adolescentes. Tais dados permitem identificar um ciclo, já que esses números têm exigido o fortalecimento das políticas públicas e dos serviços de proteção infanto-juvenil, o que, por sua vez, tem favorecido a segurança das pessoas em denunciar com mais frequência. 

Apesar deste fator e da incidência assustadora aqui apresentada, os especialistas salientam que a realidade é bastante pior do que se vê pelos registros oficiais. Pesquisas estimam que apenas cerca de 7,5% a 10% dos casos cheguem às autoridades, de forma que as estatísticas sobre o assunto representam apenas uma pequena parcela de um problema muito maior. 

A subnotificação é um complicador importante para a adequada compreensão do fenômeno e tem várias causas. Algumas delas envolvem o medo de retaliação por parte do agressor, o receio acerca de julgamentos sociais e, em casos intrafamiliares, a intenção de resolver tudo sem a intervenção de terceiros. Não é incomum ainda, que as crianças sejam desacreditadas, vistas como fantasiosas ou mentirosas quando revelam a violência. Além disso, como normalmente não há testemunhas do crime, muitos adultos podem se sentir inseguros em levar adiante acusações tão sérias sobre outra pessoa e optam por não lidar com essa questão. 

Devemos lembrar que a denúncia é fundamental para a proteção das nossas crianças e adolescentes. Trata-se de uma obrigatoriedade legal, mesmo quando há apenas suspeita de violações contra esses indivíduos. Se você soube de um problema assim ou tem razões para acreditar que esse tipo de violência está acontecendo, não seja omisso: denuncie! 

Liliane Domingos Martins

2 de junho de 2021Comments are off for this post.

A prevenção do abuso sexual on-line

A internet tem um papel fundamental na vida de todos nós, inclusive na vida das crianças e adolescentes. É uma forma maravilhosa de informação, comunicação e diversão que facilita nossa vida e abre um mundo de possibilidades. Mas é preciso lembrar que a internet faz parte do mundo real e, consequentemente, traz consigo os perigos que existem no mundo real. 

Quando o assunto é abuso sexual, sabemos que existem pessoas que fazem uso da internet para enganar, seduzir ou induzir crianças e adolescentes a acessar conteúdos inadequados, principalmente pornografia (incluindo pornografia infantojuvenil). Além disso, é por meio da internet que os jovens são estimulados a enviar fotos, vídeos e informações pessoais que serão utilizados com propósitos duvidosos. Por meio de chats e salas de bate-papo presentes em aplicativos, sites e jogos on-line, os abusadores sexuais costumam se passar por crianças ou jovens e têm acesso a um vasto material sexual que as próprias crianças e adolescentes produzem e fornecem, seja mediante encorajamento amistoso ou chantagem violenta. 

E o que os pais podem fazer diante disso? 

Primeiramente, é preciso entender que a intimidade que as crianças e adolescentes têm com a internet e com a tecnologia não vem acompanhada de uma maturidade crítica sobre seu conteúdo. Ao crescerem no mundo das redes sociais e das selfies, os jovens não têm noção dos riscos que envolvem a exposição, uma vez que esta é uma questão natural para eles. 

Nesse sentido, conversar sobre abuso sexual on-line (veja outros textos sobre esse tema no blog) com crianças e adolescentes é mais importante do que impor proibições rígidas. Os jovens costumam não aceitar conselhos e sugestões que limitem as suas experiências on-line, assim como tendem a desafiar as regras e testar os limites impostos pelos pais. Assim, o grande desafio é a construção de um efetivo diálogo entre pais e filhos, onde as regras possam ser construídas e de fato aplicadas. 

Vale pontuar que o mesmo princípio geral da prevenção do abuso sexual pode ser utilizado também quando o assunto é o abuso sexual via internet. É necessário a construção de uma relação de confiança, onde o adulto se mostre efetivamente interessado na vida da criança/adolescente e nas questões do seu cotidiano. Esse tipo de relação faz com que o/a jovem se torne menos suscetível a cair em armadilhas advindas do mundo virtual. 

Sempre dizemos aqui que conhecimento é proteção, portanto, é fundamental que os adultos entendam mais sobre o universo on-line, saibam usar a internet e aprendam sobre suas possibilidades de uso. Sem entender como funciona a internet é difícil estabelecer um efetivo diálogo sobre esse assunto com os mais jovens. Portanto, aprenda sobre a internet, os riscos que a envolvem e os modos de promover uma navegação segura. Leia sobre o assunto, converse com amigos a respeito e acesse sites que falem sobre esse tema. 

Além disso, conheça os sites, aplicativos, redes sociais e jogos que seu pequeno costuma utilizar. Peça para que ele lhe mostre como funciona ou lhe ensine como jogar. É importante que esse interesse seja genuíno e destituído de preconceitos, de modo que seja possível construir um espaço de conversa franca sobre aquele universo. 

É importante que as crianças e os adolescentes sejam também instruídos a não divulgar dados pessoais como nome, endereço, telefone, fotografias, nome da escola etc. em locais públicos da internet, como salas de bate-papo e chats de jogos on-line ou sites de relacionamento. Além disso, os pais podem fazer uso de uma série de ferramentas que estão disponíveis para filtragem e monitoramento das atividades dos filhos na rede de internet. O Google Family Link e o Youtube Restrito são alguns exemplos de ferramentas que podem auxiliar os pais. De todo modo, o uso desse tipo de recurso deve ser feito sempre a partir de um diálogo familiar claro e voltado para um uso saudável da rede.  

Por fim, caso você identifique alguma situação suspeita ou que pode ser considerada abusiva contra uma criança ou adolescente, providências devem ser tomadas. Aliciar jovens pela internet, assim como expô-los a conteúdo sexual inapropriado é crime e deve ser denunciado. Portanto, nessas situações, acolha a criança/adolescente que foi vítima dessa situação e, em seguida, faça prints das conversas, recolha o máximo de dados possíveis acerca do abusador sexual (perfil na internet, site, endereço eletrônico de acesso à página etc) e denuncie. 

Silvia Pereira Guimarães

5 de maio de 2021Comments are off for this post.

Entre a culpa e a responsabilidade

É muito recorrente que vítimas de abuso sexual relatem sentir culpa pela violência que viveram. Esse sentimento, tão presente e forte, pode até mesmo impedir que muitas delas tomem coragem para colocar limites no abuso ou para revelarem a alguém sobre essa situação. 

Quando falamos em culpa, devemos levar em conta que ela compreende dois aspectos. Uma coisa é a culpa no sentido legal do termo, que se refere ao componente de responsabilidade pela agressão. Outra coisa é a culpa no sentido psicológico, expressa pelo afeto que surge a partir da interpretação particular da vítima sobre a experiência abusiva.

Feita essa diferenciação, cabe ressaltar que, em todas as situações de assédio, a culpa, no seu sentido legal, é sempre do agressor. Isso quer dizer que, em nenhuma hipótese, a vítima pode ser responsabilizada pela violência que sofreu. Isso porque a culpa, enquanto ligada à responsabilidade pela violência, é obviamente de quem comete o ato.

Infelizmente, isso nem sempre fica claro e é comum que quem sofreu a agressão seja responsabilizado pela própria vitimização, em razão de seus hábitos, comportamentos ou do modo de se vestir. Se soma a esse erro a ideia equivocada de que a vítima pode ter consentido com o abuso de alguma forma, como nos casos em que não conseguiu esboçar reação. 

No que se refere à culpa que muitas vítimas experimentam, entende-se que depende de aspectos individuais e pode se originar por inúmeras causas. Embora não tenha responsabilidade legal pelo abuso, a vítima pode sentir-se culpada, por exemplo, por manter afeto ou proximidade com o agressor. Pode ainda sentir-se mal por não ter percebido o caráter perverso da interação a tempo de se proteger ou por ter tido alguma sensação fisicamente agradável durante o abuso, a despeito do desconforto emocional que a situação lhe causou.

Vemos que, em muitos casos, esse tipo de culpa nasce da ideia de que seria possível fazer as coisas de forma totalmente diferente. Olhando em retrospectiva, a pessoa se imagina capaz de estar mais alerta, de reagir de outro modo e de se autoproteger. É preciso entender que tais hipóteses partem de uma análise posterior, feita com elementos que a pessoa não tinha antes da agressão e, nesse sentido, constituem uma fantasia que não seria viável na prática. 

Além disso, nem sempre o abuso envolve violência física e muitos agressores investem seus recursos em um longo processo de aliciamento, a partir do qual identificam os pontos fracos de seu alvo, bem como as condições mais favoráveis para agir. Diante disso, podem se mostrar extremamente gentis e amáveis, carinhosos e companheiros, atitude que cria um vínculo de confiança, diminui a resistência da vítima e confunde sua percepção, possibilitando a conclusão do ato abusivo.

É importante saber que a culpa sentida pela vítima não só amplifica seu sofrimento, mas também dificulta a elaboração do trauma gerado pela experiência abusiva. Esse sentimento merece o cuidado profissional e pode ser devidamente trabalhado dentro de um processo psicoterapêutico. 

No que diz respeito à culpa por parte do agressor, cabe a devida punição legal, a partir da qual ele pode quitar sua dívida com a sociedade.

Juliana Borges Naves

21 de abril de 2021Comments are off for this post.

Como estabelecer uma relação de confiança com meu filho?

Por muitas vezes falamos aqui sobre a importância do estabelecimento de uma relação de confiança junto à criança como uma das mais importantes vias para a prevenção do abuso sexual infantil.

Mas, como construir uma relação de confiança com meu filho?

Essa é uma pergunta simultaneamente preciosa e difícil. 

“Preciosa” porque trata-se de um desejo legítimo de qualquer adulto que conhece os desafios que envolvem a prevenção do abuso sexual e entende a importância do estabelecimento de uma relação que transmita segurança e confiança para a criança.  

Quando há esse tipo de relação, a criança se sente segura para dizer de forma franca o que está lhe incomodando, inclusive sobre temas da sexualidade, sabendo que aquele conteúdo relatado será escutado com atenção e respeito, não sendo castigado ou reprimido. Isso possibilita ao adulto identificar as questões que envolvem angústia e sofrimento, e abre a possibilidade de se conversar sobre isso. Nesse sentido, aproximações inadequadas, abusivas ou com conotação sexual poderão ser identificadas precocemente, possibilitando a tomada de providências. 

Além de preciosa, a pergunta é também “difícil” porque não existe uma resposta pronta que a contemple. A formação de uma relação segura e íntima entre um adulto (pode ser a mãe, o pai, uma avó etc.) e uma criança envolve uma série de elementos subjetivos e íntimos que fogem a qualquer receita preestabelecida. 

As dificuldades ou facilidades encontradas pelo adulto na construção desse tipo de vínculo esbarram em fatores dos mais diversos, dentre eles a própria história de vida do adulto e da criança e as formas como se deram suas relações, o lugar da criança na vida desse adulto, seus próprios traumas e dificuldades pessoais, características de personalidade de ambos, etc. Assim, a forma como um adulto vai se relacionar com a criança que está sob seus cuidados será sempre única e particular, não sendo possível enquadrar em uma receita universal. 

Apesar disso, é possível pensar noções gerais que fundamentam a construção desse laço de proximidade. A primeira delas é que esse processo demanda tempo, por vezes uma vida inteira, portanto, não pode ser elaborado de um dia para o outro.  

Trata-se de uma construção gradual, lenta, por meio do diálogo cotidiano e das pequenas interações, onde o adulto se mostra aberto e disponível. Isso significa que, ainda que a criança tenha como assunto coisas banais do dia a dia, elementos de fantasia ou do seu brincar, cabe ao adulto escutar, se interessar efetivamente pelo que está sendo relatado. Ouvir não é o mesmo que conversar enquanto mexe no telefone celular ou cozinha. Trata-se de reservar momentos de troca, interação e, assim, maior aproximação. 

Além disso, cabe ao adulto procurar esses diálogos, construir o hábito de perguntar sobre o cotidiano da criança, como foi seu dia, o que ela fez ou como está se sentindo. Contudo, não como quem cumpre os itens de um questionário, mas como alguém que se interessa verdadeiramente pelas mini aventuras da vida daquela criança. 

Aqui, vale lembrar que é fundamental que o adulto adote uma postura de sincero respeito em relação ao conteúdo que lhe é apresentado. Isso significa não julgar ou minimizar sentimentos, assim como não ridicularizar o que está sendo dito. É importante que a criança sinta que o que ela diz é relevante, uma vez que isso é relevante para uma boa relação. 

Eventualmente, o adulto pode também compartilhar algum conteúdo seu, por exemplo, falar de forma franca como está se sentindo naquele dia ou em relação a determinada questão. Trata-se de uma postura que aproxima, que o desloca um pouco da posição hierarquicamente superior, e o traz para um contexto comum e mais próximo da criança. 

Por fim, vale ao adulto sinalizar verbalmente para a criança que ela pode confiar nele e lhe procurar sempre que sentir necessidade, pois ele estará aberto para escutar e ajudar no que for preciso. Ainda que essa mensagem esteja sendo transmitida ao longo do tempo nos comportamentos cotidianos, a verbalização dessa disponibilidade auxilia no entendimento por parte da criança. 

Silvia Pereira Guimarães

7 de abril de 2021Comments are off for this post.

Abusos Disfarçados: a camuflagem da violência em ações de carinho, brincadeira, cuidado ou como acidentes

O abuso sexual de crianças e adolescentes nem sempre envolve o emprego de condutas agressivas. Em realidade, na maior parte dos casos, o ofensor aborda a vítima como se estivesse fazendo uma brincadeira, um carinho, auxiliando com algum cuidado de higiene ou como se o ato fosse um mero acidente.  

O abuso disfarçado de brincadeira pode se dar, por exemplo, quando o agressor faz cócegas na criança, mas aproveita para tocar nas partes íntimas dela; ou quando desfruta do prazer da fricção genital que a vítima faz quando brinca de “cavalinho” em seu colo. Também há aqueles casos em que “o tio” coloca balas ou brinquedos dentro da roupa da vítima e, ao procurar o objeto, passa a mão pelo corpo dela. 

Em outras situações, o abuso é empreendido pelo agressor como se fosse uma demonstração de afeto. Somos acostumados a expressar carinho por meio de toques como o beijo e o abraço, que são bastante agradáveis. Especialmente no caso de crianças mais novas, porém, pode ser difícil diferenciar esse tipo de carícia de, por exemplo, um beijo dado maliciosamente em seu órgão genital. Para elas, nenhuma parte do corpo é sexualizada e, tudo o que percebem, costuma ser a sensação gostosa que aquele contato lhe provoca.

Há ainda os casos de violência sexual em que o abusador finge estar prestando um cuidado de higiene à vítima enquanto, na verdade, explora o corpo dela. São comuns as queixas sobre pais abusivos que tocam o corpo de seus filhos de maneira exagerada durante o banho e que se justificam na necessidade de limpeza para manipular a vagina e o ânus de suas crianças.

No mais, o ato abusivo pode também ser realizado de modo a parecer um acidente ou acaso, um contato físico indevido que o agressor diz ter ocorrido “sem querer”. Isso se reflete, por exemplo, em ocasiões nas quais o adulto passa em um lugar apertado procurando esfregar seu corpo contra o da criança ou finge cair e buscar equilíbrio na vítima, aproveitando-se para tocar em seus seios.

Todas essas circunstâncias são implementadas pelo agressor de um jeito que suas más intenções não fiquem evidentes e pareçam aproximações inocentes. Da forma como fazem, fica mais complicado para as crianças e adolescentes entenderem que aquele contato é inapropriado, o que torna improvável qualquer reação ou relato por parte delas. Mesmo para outros adultos, pode haver alguma confusão para compreender que aquele conhecido que brinca e auxilia com os pequenos da casa não oferece ajuda genuína, mas procura tão somente oportunidades de abuso. 

Para todos aqueles que estão dedicados a saber mais sobre como ocorre a violência sexual contra crianças e adolescentes é preciso ter em mente que o processo abusivo pode ser sutil como descrevemos. Estando consciente sobre esse risco, você fica mais preparado para distinguir quando a aproximação de outros adultos é amigável em comparação a outras interações que envolvem manipulação e podem ser prejudiciais aos seus filhos.  

Liliane Domingos Martins

24 de março de 2021Comments are off for this post.

Criança mente sobre o abuso?

Essa pergunta é muito comum, a tal ponto que o argumento de que o relato não passa de uma fantasia é frequentemente usado pelos advogados de defesa no âmbito jurídico. Nesse contexto, a incapacidade da vítima para apresentar um relato cronologicamente ordenado e detalhado sobre a vitimização é encarada por advogados e magistrados como um indício de que ela estaria mentindo ou fantasiando sobre a situação abusiva.

Tal entendimento parte do desconhecimento acerca de características fundamentais e típicas da infância, bem como das etapas de desenvolvimento do processo cognitivo e da aquisição da memória. Em razão disso, muitos adultos esperam que crianças tenham capacidades similares às suas, de forma que incoerências e incongruências são tomadas por indicativos de falta de veracidade.

No que se refere às habilidades da infância, entre 4 e 5 anos de idade, uma criança já é capaz de distinguir verdade de mentira, como também de mentir intencionalmente para, por exemplo, fugir de um castigo, obter recompensa, agradar alguém ou proteger figura significativa. 

Já a capacidade de imaginar, de lançar mão de ideias fantasiosas para interpretar ou relatar algum acontecimento, é bastante comum e recorrente na infância. A imaginação e o jogo simbólico são processos normais e essenciais para o desenvolvimento integrado das crianças e possibilita que elas internalizem situações do dia a dia ou elaborem vivências traumáticas. É por meio da brincadeira e da imaginação que uma criança passa da posição de objeto, que deve obediência aos pais, professores, irmãos ou a alguma outra criança, para o lugar de quem manda, de quem sabe, de quem determina as regras. É brincando que a criança pode mudar de papel e se distanciar temporariamente da condição de dependência e impotência que ela experimenta em diversos momentos. 

Dito isso, nos cabe fazer a mea culpa. Adultos também mentem, e muito. Pode-se dizer, considerando as estatísticas, que mentem bem mais que as crianças. Ademais, também fantasiam. Fazem planos diante de um jogo da mega sena, ensaiam conversas antes de um encontro e repassam inúmeras respostas que não deram quando confrontados, por vezes em voz alta. Nesse sentido, pedem das crianças a maturidade e coerência que nem mesmo têm.

Mas, voltando à pergunta inicial: Crianças mentem que foram abusadas?

Embora fantasiem, crianças não vivem em um mundo de fantasia e, por volta de três anos e meio, conseguem distinguir fatos concretos da imaginação. Além disso, costumam fantasiar com elementos que lhes são apresentados. Por conta disso, as brincadeiras giram em torno de situações habituais, de fatos que aconteceram na família ou de temas movidos por histórias imaginárias: personagens de livros, desenhos ou jogos. Considerando que cenas eróticas não fazem parte de vivências corriqueiras na infância, seria bastante atípico que uma criança relatasse uma situação sexualmente abusiva a partir da própria criatividade. Ainda que sejam capazes de fantasiar, a maioria das crianças não possui conhecimento ou percepção suficientes para ter o que são, em essência, fantasias sexuais adultas.

Aqui, cabe a ressalva de que uma criança pode ter contato com cenas eróticas de modo incidental, pela internet ou manipulando o celular dos responsáveis, por exemplo. Sendo assim, não necessariamente o relato de uma situação aparentemente sexual é produto do assédio de algum adulto. Vale esclarecer, entretanto, que expor intencionalmente uma criança ou adolescente a uma cena de conteúdo erótico, seja pessoalmente, seja em vídeo, configura sim violência sexual.

Sobre a mentira, é difícil entender que tipo de motivação levaria uma criança a inventar uma acusação de abuso contra alguém. Raramente uma criança mente sobre isso, a menos que esteja sob influência de um terceiro que visa algum benefício com a denúncia. Mesmo assim, quando consideramos o contexto de litígio e de divórcio, tem-se que apenas 6% das denúncias de violência sexual são inverídicas.

Nesse sentido, é mais comum uma criança usar a capacidade de mentir para encobrir uma violência que aconteceu com ela, seja por ameaças, por receio das consequências do relato ou pela necessidade de proteger um agressor com quem tem laços afetivos.

Juliana Borges Naves

17 de março de 2021Comments are off for this post.

Profissionais Acolhendo Relatos de Abuso: as diferenças entre escuta especializada e depoimento especial

A legislação brasileira teve um importante avanço recente no que se refere ao acolhimento de relatos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Até então, eram relativamente frequentes os episódios de violência institucional, nos quais profissionais mal preparados acabavam por ampliar o sofrimento das vítimas com pressões, preconceitos e outras condutas inadequadas, que comprometiam a confiabilidade das narrativas. Ante a esses problemas, a Lei N° 13.431/17, que vem sendo conhecida como Lei da Escuta Protegida, definiu sobre estratégias de abordagem que devem ser observadas por todos aqueles que trabalham em contextos nos quais são responsáveis por ouvir crianças ou adolescentes envolvidos em situações abusivas. Dentre essas estratégias, vamos aqui apresentar sobre a escuta especializada e o depoimento especial, indicando as diferenças entre ambas.

A escuta especializada é o procedimento que deve ser realizado mais frequentemente, já que é indicada para praticamente todo profissional que compõe a rede de proteção, sejam conselheiros tutelares, professores, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc. O princípio fundamental da escuta especializada envolve o livre relato, ou seja, a estimulação da criança ou adolescente para que fale sobre os episódios de violência com o mínimo de intervenção e, quando algum esclarecimento for necessário, que seja feito por meio de perguntas abertas e não diretivas. Além disso, é essencial ter claro que a escuta especializada é limitada em sua coleta de dados e não visa a produção de provas, o que significa que tal abordagem deve abranger apenas o estritamente necessário para o cumprimento de sua finalidade, que é tão somente de acolhimento, provimento de cuidados e encaminhamento.

Quanto ao depoimento especial, é comum que, equivocadamente, alguns profissionais documentem ter usado esse tipo de procedimento para ouvir uma criança ou adolescente. A ideia, provavelmente, é de garantir que cuidou-se contra práticas revitimizantes ou para evitar a sugestionabilidade do discurso da vítima, mas, tendo em vista que é essencial sempre estar atento a tais questões, essa não é a especificidade do depoimento especial. O depoimento especial é, na verdade, um modelo de oitiva de crianças e adolescentes exclusivo a autoridades policiais ou judiciárias. Além disso, o depoimento especial tem uma formatação bastante particular, de modo que, mesmo nos órgãos com essas competências, certas características devem ser resguardadas para que a entrevista com a vítima receba esse nome. 

De modo geral, é preciso saber que o procedimento de depoimento especial tem dois objetivos principais. O primeiro deles, é o de evitar que a vítima seja repetidamente ouvida sobre um tema tão difícil como a violência sexual. Tendo isso em vista, a sessão é gravada em áudio e vídeo, o que permite que outros profissionais tenham acesso às informações prestadas, sem a necessidade de acionar novamente aquela criança ou adolescente. Nessa gravação está contido o registro da conversa realizada entre a vítima e um expert, que faz uso de um protocolo de entrevista forense e que é habilitado para mediar as perguntas de uma sala de audiência para a criança ou adolescente, adaptando a linguagem para o nível de desenvolvimento dela. Ambos encontram-se isolados em um recinto separado, mas a vítima está ciente de que aquele encontro está sendo acompanhado por vários outros interessados. 

Isso conduz ao segundo objetivo do depoimento especial, que, dentro do rito processual, visa garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório por parte do investigado. Para tal, a oitiva precisa ser realizada conforme uma audiência judicial, com a presença de juiz, promotor, advogados e aquele que foi apontado como responsável pela violência. Esses atores assistem à entrevista com a vítima enquanto ela acontece e podem encaminhar seus questionamentos, isso em conformidade com o que foi mencionado logo acima.

Além da Lei N° 13.431/17, o Decreto N° 9.603/2018 instituiu princípios ainda mais específicos para a realização da escuta especializada e do depoimento especial. Os dois documentos destacam-se como dispositivos históricos, concentrados no melhor interesse de crianças e adolescentes e que devem ser conhecidos por todo profissional que lida com esse público em suas rotinas de trabalho. Sabemos que pode ser bem difícil receber relatos de violência, principalmente por parte de nossos pequenos, mas, quando você está ciente sobre seu papel nisso e sobre como conduzir a situação, é provável que essa tarefa seja um pouco menos intimidante. Fique atento à legislação!

Liliane Domingos Martins

10 de março de 2021Comments are off for this post.

Por que devemos evitar beijar a criança na boca?

O beijo na boca entre pais e filhos é um tema que, de tempos em tempos, volta a ser palco de discussão. Independentemente da polêmica ou das questões morais que muitas vezes assumem o tom dessa questão, é importante estar atento aos aspectos psicológicos desse comportamento para a criança e dos riscos que ele traz. 

É comum que os pais, em suas expressões cotidianas de amor pelos filhos, nas demonstrações de carinho, deem beijos na boca da criança, que rapidamente são correspondidos por ela. A intenção, certamente, é de um comportamento amoroso e inocente, que expressa o vínculo existente entre eles. 

Contudo, é importante lembrar que, desde o momento do nascimento, somos seres em desenvolvimento. Assim, as noções de afeto e de sexualidade da criança são bastante distintas das do adulto e encontram-se em franco processo de amadurecimento. Aquilo que é percebido como carinho, como demonstração de afeto, como permitido ou não, vai sendo construído paulatinamente, a partir de suas primeiras relações.

Quando a criança aprende desde bebê a beijar os pais na boca, ela vai associando esse comportamento a algo bom, que se faz com pessoas que gosta. Desse modo, haverá uma forte tendência a reproduzir esse tipo de ação com outras pessoas que gosta: com os coleguinhas da escola, com a professora, com a babá, com outros adultos ao seu redor. 

Nesse sentido, a criança pode se tornar um alvo fácil para uma pessoa mal intencionada, que queira se aproveitar dessa conduta. Uma vez que o beijo na boca é algo natural para aquela criança, um abusador sexual buscará utilizar isso em benefício próprio, dessensibilizando a criança para atos cada vez mais erotizados. 

Por isso é tão importante que a criança aprenda desde muito cedo que há comportamentos que são de crianças e há comportamentos que são de adultos. Assim, fica claro que existem carinhos que são trocados apenas entre adultos. Beijo na boca é um comportamento de adulto, é algo que os adultos fazem quando se gostam, quando namoram etc. Já as crianças demonstram carinho abraçando, pegando na mão, dando beijos no rosto ou na bochecha.  

Eventualmente, esse tipo de regra pode parecer exagero, pois os pais têm certeza de que a criança está em um ambiente seguro, que está apenas “em família” e que “não tem maldade nenhuma” no beijo na boca que dão em seus filhos. 

Ainda assim, é preciso entender que a criança não tem esse limite claro, do que é seguro, na cabeça dela. Ao contrário, essas noções estão sendo construídas. Ainda que existam diferenças claras de significados entre um beijo na boca de um casal e um “selinho” de carinho, esses limites não estão bem estabelecidos nos anos iniciais da vida. Apenas em uma fase mais avançada de desenvolvimento a criança consegue ter uma compreensão global sobre isso.   

Um ponto que vale a pena lembrar é que a boca é uma zona erógena do corpo que provoca sensações de prazer. Então, sendo o beijo na boca um comportamento natural, com o tempo, algumas crianças podem passar a repetir esse gesto com várias outras pessoas, simplesmente porque é bom. 

Além disso, na nossa sociedade, o beijo na boca tem uma conotação sexual, pois é a forma como um casal que possui alguma ligação erótica demonstra o afeto. Aos poucos, na medida em que cresce, a criança vai percebendo o sentido que o beijo na boca tem para outras famílias ou grupos sociais. Esses limites entre o que tem conotação afetiva e o que tem conotação sexual pode se tornar uma fonte de confusão e angústia para ela. 

Silvia Pereira Guimarães