23 de junho de 2021Comments are off for this post.

Comportamentos sexuais “normais” e “anormais” em crianças

Ao longo do desenvolvimento, crianças e adolescentes apresentarão comportamentos que expressam sua sexualidade ainda em desenvolvimento. Tratam-se de expressões de uma sexualidade infantil, bastante diferente daquelas observadas em adultos, e que estão relacionadas às descobertas referentes ao corpo (próprio e dos demais) e às sensações corporais de uma forma geral. 

Nesse sentido, a compreensão sobre o que é esperado em cada etapa do desenvolvimento infantil e quais são os comportamentos sexuais típicos, ou seja, considerados “normais” ou comuns à maioria das crianças, auxilia a pais e filhos lidarem com esse aspecto da vida de uma forma mais natural e tranquila. Além disso, tal conhecimento é fundamental para a identificação de condutas sexuais que fogem do esperado para aquela faixa etária e podem ser indicativos de algum tipo de abuso sexual. 

São exemplos de comportamentos sexuais típicos entre 0 e 4 anos de idade: auto-exploração; auto-estimulação; tocar os genitais; linguagem infantil para falar das partes do corpo; ter curiosidade em relação ao corpo de outras pessoas; exibir os genitais; interesse em atividades no banheiro; brincadeiras de faz-de-conta (“papai e mamãe”, “médico”) etc. Por outro lado, são comportamentos considerados atípicos e que devem chamar a atenção dos pais: usar linguagem sexualmente explícita; forçar o contato sexual com outras crianças; mostrar conhecimento sexual semelhante ao de um adulto; esfregar-se sexualmente em outras pessoas; tocar os genitais de maneira compulsiva, dentre outros. 

Já na faixa etária que vai de 5 a 12 anos de idade, são considerados comportamentos sexuais típicos: aumento das interações experimentais consensuais com outras crianças (no sentido de perceber diferenças e exercitar curiosidade); masturbar-se em particular (esporádico); beijo; toque; exibição; sentir-se enojada ou atraída pelo sexo oposto; fazer perguntas sobre menstruação, gravidez, comportamento sexual; falar mais sobre sexo; aumentar a linguagem sexual ou obscena; simular relações sexuais; relações sexuais digitais ou vaginais em pré-adolescentes, dentre outros. Entretanto, são considerados comportamentos sexuais atípicos nessas idades: masturbar-se em público ou de forma compulsiva; insistir em interações sexuais não consensuais com outras crianças; comportamento ou conhecimento sexual semelhante ao de um adulto; conhecer textura, sabor e cheiro de sêmen; relacionar-se com adultos e crianças de forma sexual, etc.   

Na faixa etária entre os 13 e 16 anos de idade, são exemplos de comportamentos sexuais típicos: fazer perguntas sobre relacionamento e comportamento sexual; usar linguagem sexual; masturbar-se em local privado; experimentação sexual e consensual com outros adolescentes de mesma idade; carícias; algumas vezes, relações sexuais consensuais etc. Todavia, são exemplos de comportamentos sexuais atípicos: masturbar-se em público; ter contato sexual com crianças bem mais novas; levar crianças bem mais novas para “lugares secretos” ou passar tempo incomum em sua companhia; mostrar material sexual para crianças mais novas; ver pornografia infantil na internet; expor os genitais para crianças mais novas; intimidar crianças a manter segredo, dentre outros. 

Condutas sexuais atípicas ou “anormais” em crianças e adolescentes devem sempre ser investigadas, uma vez que podem indicar que foram vítimas de um abuso sexual ou que estão abusando sexualmente de outras crianças. Sabemos que cada caso é um caso, mas, comportamentos sexuais que se mostram muito distantes daquilo que é esperado em determinada faixa etária e que tendem a ser persistentes são um importante sinal de alerta e devem ser foco de investigação.  

Silvia Pereira Guimarães

16 de junho de 2021Comments are off for this post.

Castração química: solução que não resolve

Na tentativa de solucionar o problema do abuso sexual, muito se fala da possibilidade de induzir a castração química do ofensor sexual. O procedimento de castração química é um método reversível, que consiste no uso de remédios que agem sobre a testosterona, diminuindo a libido. Quem faz essa proposta, parte da ideia de que, com menos desejo sexual ou sem a possibilidade de manter uma ereção, o agressor perderia o interesse ou os meios para cometer a violência sexual.

Infelizmente, tenho notícias nada animadoras para quem acredita nessa solução.

Quando se trata desse tipo de violência, devemos lembrar que a relação sexual é apenas um dos atos, dentre inúmeras condutas abusivas possíveis. Nesse sentido, mesmo sem condições de alcançar uma ereção, um agressor pode empreender uma infinidade de práticas, inclusive de penetração digital ou com o uso de objetos.

Há ainda que se considerar que o comportamento abusivo não deriva necessariamente de um interesse erótico por crianças. Para a maioria dos agressores, o abuso se dá por razões como: raiva, vingança, alívio de estresse, percepção de alguma oportunidade ou por uma espécie de exercício de poder sobre a vítima. Nesses casos, a castração química não teria qualquer ação contra a reincidência, já que agir sobre a libido desses indivíduos não teria impacto em outros tipos de motivação. 

Algumas das críticas feitas às propostas de castração química para ofensores sexuais levantam o problema da falta de um perfil comum a esses agressores. Médicos especialistas no assunto, como o Dr. Danilo Barbieri, Coordenador do Ambulatório de Transtornos de Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC, atestam a impossibilidade de encontrar um tratamento padrão que tenha ação efetiva para todos os agressores sexuais. Segundo ele, é preciso entender as particularidades de cada caso para traçar uma terapêutica individualizada. Conforme o profissional coloca, a maioria dos agressores pode se beneficiar de atendimento psicoterapêutico, muitos deles vão necessitar também de tratamento psiquiátrico, mas apenas uma minoria teria indicação médica para o procedimento de castração química, conhecido tecnicamente pelo nome de terapia antagonista da testosterona. 

Embora tanto psicólogos quanto psiquiatras tragam contrapontos a esse tipo de solução, alertando para a pouca efetividade dessa prática, diversos países permitem ou propõem a castração química de agressores sexuais. Em alguns lugares, esse é um tratamento que o agressor pode solicitar voluntariamente, enquanto em outros é pré-condição para a liberdade ou para a progressão da pena. A terapia antagonista da testosterona para ofensores sexuais é usada no Canadá, na Argentina, na Suécia, na Polônia, na Rússia, na Itália, na França, na Indonésia, na Dinamarca e no Oriente Médio, além de em alguns estados dos EUA. Na Califórnia, a castração cirúrgica também é indicada em alguns casos.

No Brasil, vários projetos de lei já tentaram instituir a aplicação da castração química a autores de violência sexual. Sobre isso, é bom que se saiba que os medicamentos com poucos efeitos colaterais administrados mensalmente nesses casos são bastante caros. Aplicar tal terapêutica a todos os ofensores, traria um custo alto, com pouca eficácia prática. Nesse sentido, outros programas de prevenção podem trazer melhores resultados com um menor investimento.

Juliana Borges Naves

9 de junho de 2021Comments are off for this post.

Estatísticas do Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes

O abuso sexual de crianças e adolescentes é mais comum do que a maioria das pessoas imagina. Em um estudo global abrangendo 217 pesquisas realizadas entre os anos de 1980 a 2008, a conclusão foi de que a prevalência geral desse tipo de violência é de 11,8% na população. Além disso, os resultados detalham que o problema alcançou cerca de 18% das meninas e 7,6% dos meninos avaliados.    

No Brasil, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) registrou mais de 17 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2019. Dessas, 45% aconteceu na própria casa da vítima e em 40% o agressor era seu pai ou padrasto. Além disso, 82% das ocorrências foram contra meninas. 

A visibilidade sobre o problema vem crescendo consideravelmente. Segundo dados do UNICEF, entre 2011 e 2017, houve um aumento de 83% nas notificações de estupros contra crianças e adolescentes. Tais dados permitem identificar um ciclo, já que esses números têm exigido o fortalecimento das políticas públicas e dos serviços de proteção infanto-juvenil, o que, por sua vez, tem favorecido a segurança das pessoas em denunciar com mais frequência. 

Apesar deste fator e da incidência assustadora aqui apresentada, os especialistas salientam que a realidade é bastante pior do que se vê pelos registros oficiais. Pesquisas estimam que apenas cerca de 7,5% a 10% dos casos cheguem às autoridades, de forma que as estatísticas sobre o assunto representam apenas uma pequena parcela de um problema muito maior. 

A subnotificação é um complicador importante para a adequada compreensão do fenômeno e tem várias causas. Algumas delas envolvem o medo de retaliação por parte do agressor, o receio acerca de julgamentos sociais e, em casos intrafamiliares, a intenção de resolver tudo sem a intervenção de terceiros. Não é incomum ainda, que as crianças sejam desacreditadas, vistas como fantasiosas ou mentirosas quando revelam a violência. Além disso, como normalmente não há testemunhas do crime, muitos adultos podem se sentir inseguros em levar adiante acusações tão sérias sobre outra pessoa e optam por não lidar com essa questão. 

Devemos lembrar que a denúncia é fundamental para a proteção das nossas crianças e adolescentes. Trata-se de uma obrigatoriedade legal, mesmo quando há apenas suspeita de violações contra esses indivíduos. Se você soube de um problema assim ou tem razões para acreditar que esse tipo de violência está acontecendo, não seja omisso: denuncie! 

Liliane Domingos Martins

2 de junho de 2021Comments are off for this post.

A prevenção do abuso sexual on-line

A internet tem um papel fundamental na vida de todos nós, inclusive na vida das crianças e adolescentes. É uma forma maravilhosa de informação, comunicação e diversão que facilita nossa vida e abre um mundo de possibilidades. Mas é preciso lembrar que a internet faz parte do mundo real e, consequentemente, traz consigo os perigos que existem no mundo real. 

Quando o assunto é abuso sexual, sabemos que existem pessoas que fazem uso da internet para enganar, seduzir ou induzir crianças e adolescentes a acessar conteúdos inadequados, principalmente pornografia (incluindo pornografia infantojuvenil). Além disso, é por meio da internet que os jovens são estimulados a enviar fotos, vídeos e informações pessoais que serão utilizados com propósitos duvidosos. Por meio de chats e salas de bate-papo presentes em aplicativos, sites e jogos on-line, os abusadores sexuais costumam se passar por crianças ou jovens e têm acesso a um vasto material sexual que as próprias crianças e adolescentes produzem e fornecem, seja mediante encorajamento amistoso ou chantagem violenta. 

E o que os pais podem fazer diante disso? 

Primeiramente, é preciso entender que a intimidade que as crianças e adolescentes têm com a internet e com a tecnologia não vem acompanhada de uma maturidade crítica sobre seu conteúdo. Ao crescerem no mundo das redes sociais e das selfies, os jovens não têm noção dos riscos que envolvem a exposição, uma vez que esta é uma questão natural para eles. 

Nesse sentido, conversar sobre abuso sexual on-line (veja outros textos sobre esse tema no blog) com crianças e adolescentes é mais importante do que impor proibições rígidas. Os jovens costumam não aceitar conselhos e sugestões que limitem as suas experiências on-line, assim como tendem a desafiar as regras e testar os limites impostos pelos pais. Assim, o grande desafio é a construção de um efetivo diálogo entre pais e filhos, onde as regras possam ser construídas e de fato aplicadas. 

Vale pontuar que o mesmo princípio geral da prevenção do abuso sexual pode ser utilizado também quando o assunto é o abuso sexual via internet. É necessário a construção de uma relação de confiança, onde o adulto se mostre efetivamente interessado na vida da criança/adolescente e nas questões do seu cotidiano. Esse tipo de relação faz com que o/a jovem se torne menos suscetível a cair em armadilhas advindas do mundo virtual. 

Sempre dizemos aqui que conhecimento é proteção, portanto, é fundamental que os adultos entendam mais sobre o universo on-line, saibam usar a internet e aprendam sobre suas possibilidades de uso. Sem entender como funciona a internet é difícil estabelecer um efetivo diálogo sobre esse assunto com os mais jovens. Portanto, aprenda sobre a internet, os riscos que a envolvem e os modos de promover uma navegação segura. Leia sobre o assunto, converse com amigos a respeito e acesse sites que falem sobre esse tema. 

Além disso, conheça os sites, aplicativos, redes sociais e jogos que seu pequeno costuma utilizar. Peça para que ele lhe mostre como funciona ou lhe ensine como jogar. É importante que esse interesse seja genuíno e destituído de preconceitos, de modo que seja possível construir um espaço de conversa franca sobre aquele universo. 

É importante que as crianças e os adolescentes sejam também instruídos a não divulgar dados pessoais como nome, endereço, telefone, fotografias, nome da escola etc. em locais públicos da internet, como salas de bate-papo e chats de jogos on-line ou sites de relacionamento. Além disso, os pais podem fazer uso de uma série de ferramentas que estão disponíveis para filtragem e monitoramento das atividades dos filhos na rede de internet. O Google Family Link e o Youtube Restrito são alguns exemplos de ferramentas que podem auxiliar os pais. De todo modo, o uso desse tipo de recurso deve ser feito sempre a partir de um diálogo familiar claro e voltado para um uso saudável da rede.  

Por fim, caso você identifique alguma situação suspeita ou que pode ser considerada abusiva contra uma criança ou adolescente, providências devem ser tomadas. Aliciar jovens pela internet, assim como expô-los a conteúdo sexual inapropriado é crime e deve ser denunciado. Portanto, nessas situações, acolha a criança/adolescente que foi vítima dessa situação e, em seguida, faça prints das conversas, recolha o máximo de dados possíveis acerca do abusador sexual (perfil na internet, site, endereço eletrônico de acesso à página etc) e denuncie. 

Silvia Pereira Guimarães

26 de maio de 2021Comments are off for this post.

O medo da falsa denúncia

Uma preocupação recorrente quando nos deparamos com uma suspeita de violência sexual é quanto à possibilidade de se tratar de um engano. Sabemos que o estupro é um crime grave e acusar alguém injustamente pode ser terrível. 

Diante desse risco, quando uma criança narra uma interação aparentemente sexual com um adulto, muita gente minimiza a situação, argumentando que deve ter havido algum equívoco. Isso é especialmente complicado porque a maior parte dos assédios vem de parentes ou de amigos da família. Nesse contexto, frente ao relato da criança, é comum que muitas perguntas sujam, além de vários argumentos:

  • E se ela estiver mentindo? 
  • E se for uma fantasia da cabeça dela?
  • Não é possível que isso tenha acontecido, pois a criança vivia perto dessa pessoa, não tinha raiva nem nada…
  • Mas uma pessoa tão séria e trabalhadora, que eu conheço a vida inteira... não ia jamais fazer algo assim...
  • Se o abuso tivesse mesmo acontecido, alguém teria visto, eles nunca ficavam sozinhos…

Então, dentre a angústia em ter que lidar com o abuso e a dificuldade de imaginar que há um agressor dentro da família, o cuidado com a vítima pode ficar em segundo plano.

Nesse ponto, cabe esclarecer que, embora haja denúncias falsas, essa não é a situação mais comum. Mesmo que crianças tenham capacidade de mentir ou fantasiar, o habitual é que as histórias inventadas por elas tenham como repertório vivências corriqueiras da infância. Mentir que já tomou banho, que escovou os dentes, já terminou a tarefa de casa ou que foi o irmão quem rabiscou a parede é muito diferente de falar que algum adulto tocou em seus genitais. Relatos de cenas sexuais não são típicos na infância e devem sempre ser tomados como um sinal de alerta. 

Conforme a literatura especializada, de 1,5 a 6% das denúncias são inverídicas, ou seja , a grande maioria dos relatos são verdadeiros. O que vemos, na prática, é que é muito mais fácil uma criança mentir negando ou minimizando a violência sexual pela qual passou do que fazer uma falsa alegação de abuso.

É preciso que se saiba que a tarefa de responder se houve ou não houve violência sexual não é da família, nem da escola, nem da rede de apoio daquela criança. Para isso, existe toda uma estrutura de investigação e justiça, com profissionais capacitados.

Na dúvida, a denúncia é o único jeito de entender o que houve. Denunciar não é culpar ninguém. É sim dar a chance para que a situação seja esclarecida, o que é mais justo para ambos os lados.

Juliana Borges Naves

19 de maio de 2021Comments are off for this post.

A Revelação como Prova

O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um tipo de crime que tende a se dar sem testemunhas e sem deixar marcas físicas que comprovem a violência. Assim, como é grande o desafio de constatar sua ocorrência, a palavra da vítima tem assumido destaque e tem sido considerada como elemento de prova. Trata-se de uma tendência internacional e que também vem sendo reforçada em nosso país.

Para que isso seja possível, uma recomendação importante é a de preservar o conteúdo da fala da criança/adolescente vitimizada, assim como acontece com as evidências de outros delitos. Em casos de assassinato, por exemplo, o ambiente é isolado, evitando adulterações da cena e maximizando a possibilidade de que se possa entender a dinâmica dos fatos que culminaram no homicídio, sua autoria, etc. Do mesmo modo que se faz nessas situações, portanto, é preciso pensar que, se o relato da vítima pode ser usado como prova, quem o acolhe é responsável por resguardá-lo.

Para resguardar uma revelação de abuso, a pessoa que escuta a vítima deve atentar para três pontos principais: ter cautela para não revitimizar a criança/adolescente, buscar ampliar o número de informações colhidas por meio do livre relato e fazer o registro de absolutamente tudo o que aconteceu na sessão.

Sobre o primeiro desses pontos, a ideia é garantir que a vítima receba o melhor acolhimento possível, eliminando seu confronto com pressões, preconceitos ou mitos sobre a violência. Lembrar a experiência abusiva e ter que falar sobre o assunto costuma ser algo bastante difícil, de forma que é imprescindível que aquele que se dispõe a ouvir a criança ou o adolescente seja cuidadoso quanto ao que diz nesse momento. Não faz sentido questionar a vítima sobre como ela deveria ter agido, a roupa que usava, o porquê de ter se comportado de determinada forma ou sobre sua incapacidade de reagir. O crime é de responsabilidade do agressor e tais indagações fazem parecer que o erro foi dela de alguma forma, implicando em sua menor disponibilidade para fazer o relato e aumentando seus sentimentos de ansiedade e de culpa.

O segundo ponto envolve o esforço por estimular a vítima a falar ao máximo sobre o que lhe aconteceu, mas de uma forma espontânea e livre. O papel do adulto que recebe o relato não é de investigar a situação e, sendo assim, ele não deve fazer perguntas diretivas à criança/adolescente. Seu papel é de acolher e entender o problema para, então, encaminhar aquele que passou pelo abuso aos serviços de atendimento mais adequados. Para tal, esse adulto pode incentivar a vítima a apresentar mais dados se valendo de expressões exploratórias ou de indagações que são classificadas como abertas, por exemplo: “me conta mais sobre isso”, “me conta tudo sobre isso”, “o que mais aconteceu?”, “e depois disso, o que houve?”, “como foi que essa situação aconteceu?”, etc.

O terceiro ponto desse processo exige que a pessoa que ouviu o relato faça o registro de todas as informações colhidas e observadas naquele momento. Devem ser anotados todos os dados oferecidos espontaneamente pela criança/adolescente como suas descrições da cena abusiva, sobre como foi abordada, em que local, data ou momento do dia, o que fazia, a roupa que usava, o diálogo travado entre o agressor e ela, suas sensações físicas, seus pensamentos e sentimentos naquela hora, sobre como reagiu, se sofreu ameaças, se recebeu presentes, etc. Absolutamente tudo o que foi dito pela vítima deve ser devidamente listado e com as mesmas palavras que ela utilizou. Além disso, é importante escrever também sobre como a criança se apresentou, as emoções que exteriorizou e sobre qualquer interferência ocorrida enquanto a escuta se dava. 

Essas medidas aqui apontadas são especialmente importantes na ocasião em que a vítima oferece seu primeiro relato sobre o abuso. Aquilo que a criança ou adolescente traz como parte da revelação, se acolhido por meio desses procedimentos, pode aumentar a confiança dela com as etapas subsequentes e minimizar a necessidade de que ela seja ouvida de forma repetida. Cabe a cada um ficar alerta sobre o assunto e se preparar com essas dicas para atuar sobre as questões indicadas.

Liliane Domingos Martins

12 de maio de 2021Comments are off for this post.

18 de maio – O Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes

O dia 18 de maio foi instituído oficialmente como o Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Essa é uma data muito importante, pois vários órgãos se unem e se mobilizam para chamar a atenção para esse problema e para promover a reflexão em toda a sociedade sobre as formas de combatê-lo. 

A escolha do dia 18 de maio não se deu por acaso. Essa data marcou a morte da menina Araceli Cabrera Sánchez Crespo, em 1973, na cidade de Vitória-ES. A criança foi sequestrada, violentada sexualmente e assassinada quando tinha apenas 8 anos de idade. Os suspeitos, pessoas influentes da sociedade naquela época, foram absolvidos e ninguém pagou por esse crime, de forma que não houve justiça para o ocorrido. Apesar de impactante, o “caso Araceli” é apenas um dentre os inúmeros episódios de vitimização de crianças e adolescentes em nosso país, de forma que ele se tornou emblemático para lembrar os outros que o sucederam.

As estatísticas atuais nos mostram que não se trata de uma problemática do passado ou de uma questão menos relevante com o passar do tempo. Muito pelo contrário. Os dados oficiais indicam que o número de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no Brasil continuam extremanente elevados. Além disso, a pandemia aponta para um cenário que tornou o quadro mais complicado, ainda que não se tenha o exato dimensionamento do impacto dos abusos no país em função do isolamento e da crise social. 

Segundo os dados mais recentes do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, no primeiro semestre de 2020, durante o início da pandemia do novo coronavirus, caíram os registros em delegacia de casos envolvendo violência doméstica e violência contra as mulheres. Por outro lado, houve um aumento no número de feminicídios e homicídios dolosos contra mulheres, se comparado com o mesmo período do ano anterior. Essa diferença nos dados sinaliza que, muito provavelmente, houve uma diminuição no número de denúncias oficiais de casos envolvendo violência doméstica, mas que isso não reflete uma diminuição da violência. 

Conforme o texto do Anuário Brasileiro, pode ter havido um aumento na subnotificação de alguns tipos de crimes, tendo em vista que o distanciamento social impõe dificuldades para que vítimas de violência doméstica denunciem esse problema. Sendo assim, observou-se queda nos registros dos crimes que dependem, principalmente, da presença física da vítima nas delegacias, em especial os casos de estupro, que demandam também exame pericial.

Especificamente sobre os números relacionados à violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, os dados completos mais recentes constam de 2019. Sabemos que esse tipo de crime é extremamente subnotificado, em razão das diversas complexidades que o envolvem (na maioria das vezes acontece dentro do contexto familiar; vítimas de pouca idade; comumente sem indícios físicos, etc.). Ainda assim, as estatísticas nacionais são assustadoras: em 2019 foram registrados 66.348 vítimas de estupro e estupro de vulnerável, o que corresponde a 1 estupro a cada 8 minutos em nosso país. Desse número, 58,8% das vítimas tinham no máximo 13 anos, o que corresponde a 39.012 casos registrados. Do total de vítimas, 85,7% eram do sexo feminino, o que confirma que a violência sexual continua se dando principalmente contra crianças e adolescentes do sexo feminino. 

Diante desse quadro, o cenário da pandemia parece impor um desafio ainda maior no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e todas as ações de conscientização sobre essas questões são mais pertinentes do que nunca.

O mês de maio é, portanto, um momento de mobilização, de unir esforços, o que não nos exime de continuarmos a nossa luta em todos os demais dias do ano. A violência sexual é um tipo de crime bárbaro, impactante, e de difícil enfrentamento. Por isso, todos: pais, professores, profissionais de saúde, profissionais da assistência social, profissionais do direito, gestores públicos, profissionais da rede de proteção e a sociedade de modo geral, estão convidados a se unirem a nós nessa causa. 

Silvia Pereira Guimarães

5 de maio de 2021Comments are off for this post.

Entre a culpa e a responsabilidade

É muito recorrente que vítimas de abuso sexual relatem sentir culpa pela violência que viveram. Esse sentimento, tão presente e forte, pode até mesmo impedir que muitas delas tomem coragem para colocar limites no abuso ou para revelarem a alguém sobre essa situação. 

Quando falamos em culpa, devemos levar em conta que ela compreende dois aspectos. Uma coisa é a culpa no sentido legal do termo, que se refere ao componente de responsabilidade pela agressão. Outra coisa é a culpa no sentido psicológico, expressa pelo afeto que surge a partir da interpretação particular da vítima sobre a experiência abusiva.

Feita essa diferenciação, cabe ressaltar que, em todas as situações de assédio, a culpa, no seu sentido legal, é sempre do agressor. Isso quer dizer que, em nenhuma hipótese, a vítima pode ser responsabilizada pela violência que sofreu. Isso porque a culpa, enquanto ligada à responsabilidade pela violência, é obviamente de quem comete o ato.

Infelizmente, isso nem sempre fica claro e é comum que quem sofreu a agressão seja responsabilizado pela própria vitimização, em razão de seus hábitos, comportamentos ou do modo de se vestir. Se soma a esse erro a ideia equivocada de que a vítima pode ter consentido com o abuso de alguma forma, como nos casos em que não conseguiu esboçar reação. 

No que se refere à culpa que muitas vítimas experimentam, entende-se que depende de aspectos individuais e pode se originar por inúmeras causas. Embora não tenha responsabilidade legal pelo abuso, a vítima pode sentir-se culpada, por exemplo, por manter afeto ou proximidade com o agressor. Pode ainda sentir-se mal por não ter percebido o caráter perverso da interação a tempo de se proteger ou por ter tido alguma sensação fisicamente agradável durante o abuso, a despeito do desconforto emocional que a situação lhe causou.

Vemos que, em muitos casos, esse tipo de culpa nasce da ideia de que seria possível fazer as coisas de forma totalmente diferente. Olhando em retrospectiva, a pessoa se imagina capaz de estar mais alerta, de reagir de outro modo e de se autoproteger. É preciso entender que tais hipóteses partem de uma análise posterior, feita com elementos que a pessoa não tinha antes da agressão e, nesse sentido, constituem uma fantasia que não seria viável na prática. 

Além disso, nem sempre o abuso envolve violência física e muitos agressores investem seus recursos em um longo processo de aliciamento, a partir do qual identificam os pontos fracos de seu alvo, bem como as condições mais favoráveis para agir. Diante disso, podem se mostrar extremamente gentis e amáveis, carinhosos e companheiros, atitude que cria um vínculo de confiança, diminui a resistência da vítima e confunde sua percepção, possibilitando a conclusão do ato abusivo.

É importante saber que a culpa sentida pela vítima não só amplifica seu sofrimento, mas também dificulta a elaboração do trauma gerado pela experiência abusiva. Esse sentimento merece o cuidado profissional e pode ser devidamente trabalhado dentro de um processo psicoterapêutico. 

No que diz respeito à culpa por parte do agressor, cabe a devida punição legal, a partir da qual ele pode quitar sua dívida com a sociedade.

Juliana Borges Naves

28 de abril de 2021Comments are off for this post.

Quando a vítima paralisa e não reage ao abuso

Em denúncias de violência sexual, é comum que as vítimas sejam questionadas sobre as razões porque não apresentaram reação contra a aproximação indevida do agressor. Mesmo em casos de crianças e adolescentes, isso também acontece. Os mais novos são confrontados sobre as razões porque não correram, gritaram ou chamaram um dos pais, como se reagir aos abusos fosse fácil e esperado.

Sim, é verdade que boa parte daqueles que são expostos a essa ameaça tentam explicitar sua oposição ao ato, empurrando o agressor ou dizendo “NÃO”, por exemplo. Ensinar as crianças e adolescentes a reagirem nesses casos é importante e algo que até já discutimos por aqui. Mesmo assim, a literatura científica aponta que é também bastante frequente o número de pessoas que paralisa diante da sensação de medo intenso, ou seja, que ficam completamente incapacitadas de esboçar qualquer resposta à violência. 

Nos estudos da área, esse fenômeno é chamado de “imobilidade tônica”. Trata-se de um mecanismo biológico e evolutivo, que acompanha os seres humanos desde tempos remotos, quando, às vezes, era essencial ficar muito quieto para evitar o ataque de um predador. Como resquício disso, ainda atualmente é usual que as pessoas congelem em contextos aterrorizantes, como em casos de estupro. De acordo com algumas pesquisas, esse tipo de situação é extremamente traumática e pode ter impacto psicológico semelhante ao de vivenciar uma guerra. Nessa condição de desorganização emocional tão forte, como explicado, a vítima pode entrar em pânico e, instintivamente, deixar de oferecer resistência ao seu algoz.

A grande questão aqui é que a imobilidade tônica não significa que a vítima foi passiva quanto ao ato abusivo ou que consentiu com ele. É um equívoco tratar o problema dessa forma. A culpa por não ter conseguido evidenciar sua contrariedade com a situação já tende a ser pesada demais para essas pessoas e é preciso que sejam acolhidas quanto a essa dor. Confrontá-la não é útil nesses casos e é revitimizante, já que quem faz esse tipo de pressão se mostra ignorante quanto ao resultado de várias pesquisas sobre a naturalidade dos episódios de paralisia em eventos traumáticos.

Liliane Domingos Martins

21 de abril de 2021Comments are off for this post.

Como estabelecer uma relação de confiança com meu filho?

Por muitas vezes falamos aqui sobre a importância do estabelecimento de uma relação de confiança junto à criança como uma das mais importantes vias para a prevenção do abuso sexual infantil.

Mas, como construir uma relação de confiança com meu filho?

Essa é uma pergunta simultaneamente preciosa e difícil. 

“Preciosa” porque trata-se de um desejo legítimo de qualquer adulto que conhece os desafios que envolvem a prevenção do abuso sexual e entende a importância do estabelecimento de uma relação que transmita segurança e confiança para a criança.  

Quando há esse tipo de relação, a criança se sente segura para dizer de forma franca o que está lhe incomodando, inclusive sobre temas da sexualidade, sabendo que aquele conteúdo relatado será escutado com atenção e respeito, não sendo castigado ou reprimido. Isso possibilita ao adulto identificar as questões que envolvem angústia e sofrimento, e abre a possibilidade de se conversar sobre isso. Nesse sentido, aproximações inadequadas, abusivas ou com conotação sexual poderão ser identificadas precocemente, possibilitando a tomada de providências. 

Além de preciosa, a pergunta é também “difícil” porque não existe uma resposta pronta que a contemple. A formação de uma relação segura e íntima entre um adulto (pode ser a mãe, o pai, uma avó etc.) e uma criança envolve uma série de elementos subjetivos e íntimos que fogem a qualquer receita preestabelecida. 

As dificuldades ou facilidades encontradas pelo adulto na construção desse tipo de vínculo esbarram em fatores dos mais diversos, dentre eles a própria história de vida do adulto e da criança e as formas como se deram suas relações, o lugar da criança na vida desse adulto, seus próprios traumas e dificuldades pessoais, características de personalidade de ambos, etc. Assim, a forma como um adulto vai se relacionar com a criança que está sob seus cuidados será sempre única e particular, não sendo possível enquadrar em uma receita universal. 

Apesar disso, é possível pensar noções gerais que fundamentam a construção desse laço de proximidade. A primeira delas é que esse processo demanda tempo, por vezes uma vida inteira, portanto, não pode ser elaborado de um dia para o outro.  

Trata-se de uma construção gradual, lenta, por meio do diálogo cotidiano e das pequenas interações, onde o adulto se mostra aberto e disponível. Isso significa que, ainda que a criança tenha como assunto coisas banais do dia a dia, elementos de fantasia ou do seu brincar, cabe ao adulto escutar, se interessar efetivamente pelo que está sendo relatado. Ouvir não é o mesmo que conversar enquanto mexe no telefone celular ou cozinha. Trata-se de reservar momentos de troca, interação e, assim, maior aproximação. 

Além disso, cabe ao adulto procurar esses diálogos, construir o hábito de perguntar sobre o cotidiano da criança, como foi seu dia, o que ela fez ou como está se sentindo. Contudo, não como quem cumpre os itens de um questionário, mas como alguém que se interessa verdadeiramente pelas mini aventuras da vida daquela criança. 

Aqui, vale lembrar que é fundamental que o adulto adote uma postura de sincero respeito em relação ao conteúdo que lhe é apresentado. Isso significa não julgar ou minimizar sentimentos, assim como não ridicularizar o que está sendo dito. É importante que a criança sinta que o que ela diz é relevante, uma vez que isso é relevante para uma boa relação. 

Eventualmente, o adulto pode também compartilhar algum conteúdo seu, por exemplo, falar de forma franca como está se sentindo naquele dia ou em relação a determinada questão. Trata-se de uma postura que aproxima, que o desloca um pouco da posição hierarquicamente superior, e o traz para um contexto comum e mais próximo da criança. 

Por fim, vale ao adulto sinalizar verbalmente para a criança que ela pode confiar nele e lhe procurar sempre que sentir necessidade, pois ele estará aberto para escutar e ajudar no que for preciso. Ainda que essa mensagem esteja sendo transmitida ao longo do tempo nos comportamentos cotidianos, a verbalização dessa disponibilidade auxilia no entendimento por parte da criança. 

Silvia Pereira Guimarães