8 de setembro de 2021Comments are off for this post.

Quando a vítima gosta do agressor: será que teve abuso sexual mesmo?

É comum as pessoas acharem que não houve abuso sexual quando a criança/adolescente continua demonstrando boa relação com o suposto agressor. Acreditam que toda vítima tem sentimentos de medo, raiva, repulsa, revolta ou outros afetos negativos sobre o abusador. Apesar disso parecer natural e ser esperado pela maioria, é bastante comum que o indivíduo molestado mantenha laços de carinho com o responsável pela violência, especialmente quando há um vínculo familiar entre eles.

Quando o abuso é cometido por um parente e mesmo assim há bom vínculo entre a vítima e seu agressor, é provável que a convivência entre eles seja feliz na maior parte do tempo e a violência se destaque como um dos poucos momentos desagradáveis que estabelecem. Nesses casos, a criança costuma gostar de estar perto do abusador, que se mostra um bom cuidador ou é divertido, brinca com ela e a faz se sentir especial de alguma maneira.

Nos casos de abusos fora da família, a ligação entre a vítima e o agressor pode ter sido intencionalmente criada por este último. Crianças e adolescentes são considerados seres vulneráveis e, por essa condição, costumam receber mais supervisão. Para um abusador conseguir se aproximar delas, portanto, quase sempre é necessário que ele se empenhe em promover uma fachada de simpatia, tornando-se um amigo querido e especial. Isso pode ser conseguido com elogios, presentes, dinheiro, doces ou outras estratégias de manipulação.   

O carinho que a criança muitas vezes sente pelo abusador pode ser usado por ele para conseguir que a vítima se submeta à violência e para garantir o seu silêncio. Isso é possível porque ela gosta dele, não quer vê-lo punido e pode até defendê-lo. Nessa situação, a vítima não quer se afastar do agressor, apenas torce para que os abusos parem. 

Saber dessas questões é importante para que você esteja mais alerta para os riscos referentes ao abuso sexual de crianças e adolescentes. Fica claro sobre o quanto é errado julgar que uma violência desse tipo não ocorreu simplesmente porque as pessoas apontadas como vítima e agressor continuam se dando bem. Esses casos são complicados mesmo e é preciso muito cuidado para analisar os fatos.

Liliane Domingos Martins

2 de setembro de 2021Comments are off for this post.

Fatores socioculturais que aumentam o risco de vitimização

Já falamos inúmeras vezes que a violência sexual contra crianças e adolescentes não é um fenômeno que acontece exclusivamente em uma determinada classe socioeconômica ou em determinado tipo de estrutura familiar, grupo étnico, religioso, cultural ou orientação sexual. Ao contrário disso, a vitimização de crianças e adolescentes é uma realidade mais ampla, que abrange todos os perfis, tornando-se um problema global a ser enfrentado. 

Assim, o abuso sexual não acontece apenas em famílias pobres e “desestruturadas”, como muitas vezes o senso comum acredita ser. Trata-se de um tipo de evento suscetível de ocorrer igualmente nas famílias “bem estruturadas”, de alto padrão socioeconômico e vida religiosa ativa. Isso se dá porque os abusos são praticados por pessoas, e não grupos ou perfis sociais. 

Dito isso, vale analisar que o abuso sexual envolve situações particulares de dominação dentro de uma relação desigual de poder: um agressor exercendo seu poder sobre uma vítima. Nesse sentido, podemos pensar em situações mais amplas que reforçam e acentuam essa desigualdade de poder e assim, por uma via indireta, podem contribuir para um aumento do risco para a ocorrência de violações diversas, entre elas, a violência sexual infantojuvenil. 

As situações de crise financeira e econômica, principalmente aquelas que perduram por longo tempo, contribuem para a construção de um cenário de instabilidade, estresse e tensão social, aumentando a incidência de crimes e violência de modo geral. Nesse contexto de fragilidade social, a violência doméstica, especialmente aquela que vitimiza os mais vulneráveis (como as mulheres e crianças), aumenta significativamente. Junto a isso, verifica-se também uma tendência geral de aumento dos abusos sexuais praticados contra as crianças. 

Um exemplo de como a crise financeira e a instabilidade social aumentam os índices de violência pode ser observado atualmente com a pandemia da Covid 19 e as medidas de distanciamento social. Os dados preliminares apontam para um aumento nas ocorrências de violência contra a mulher, assim como um aumento dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes. 

Outro ponto que pode implicar em um aumento nas taxas de vitimização são os ambientes sociais em que imperam um modelo machista de relação, onde a mulher é comumente objetificada, ou seja, desconsiderada enquanto sujeito. Modelos socioculturais de naturalização das diferenças entre homens e mulheres predispõe a relações abusivas de modo geral, entre elas, abusos de natureza sexual que atingem também as crianças e adolescentes. 

Do mesmo modo, sociedades adultocêntricas (como a nossa), onde o poder de escolha, liberdade e direitos concentra-se nos adultos, favorecem situações de vitimização dos mais jovens, uma vez que estes não são ouvidos ou suas opiniões e posicionamentos são considerados irrelevantes. Junto a isso, modelos “educacionais” violentos, que banalizam o uso da agressão física e a imposição da força e da vontade sobre o outro, reforçam a tendência de vitimização sexual infantojuvenil. 

Por fim, o implemento e a ampliação da virtualidade das relações, tem surgido como campo para o aumento da violência sexual por meios digitais. A naturalização das telas e o livre acesso dos jovens a dispositivos com acesso à internet amplia o alcance do conhecimento e traz inúmeros benefícios aos usuários. Contudo, também amplifica riscos diversos, tais como a exposição à pornografia, o aliciamento por parte de pedófilos, a indução ao sexting, os assédios sexuais, dentre outros.

Silvia Pereira Guimarães

25 de agosto de 2021Comments are off for this post.

Entre a culpa e a responsabilidade

É muito recorrente que vítimas de abuso sexual relatem sentir culpa pela violência que viveram. Esse sentimento, tão presente e forte, pode até mesmo impedir que muitas delas tomem coragem para colocar limites no abuso ou para revelarem a alguém sobre essa situação. 

Quando falamos em culpa, devemos levar em conta que ela compreende dois aspectos. Uma coisa é a culpa no sentido legal do termo, que se refere ao componente de responsabilidade pela agressão. Outra coisa é a culpa no sentido psicológico, expressa pelo afeto que surge a partir da interpretação particular da vítima sobre a experiência abusiva.

Feita essa diferenciação, cabe ressaltar que, em todas as situações de assédio, a culpa, no seu sentido legal, é sempre do agressor. Isso quer dizer que, em nenhuma hipótese, a vítima pode ser responsabilizada pela violência que sofreu. Isso porque a culpa, enquanto ligada à responsabilidade pela violência, é obviamente de quem comete o ato.

Infelizmente, isso nem sempre fica claro e é comum que quem sofreu a agressão seja responsabilizado pela própria vitimização, em razão de seus hábitos, comportamentos ou do modo de se vestir. Se soma a esse erro a ideia equivocada de que a vítima pode ter consentido com o abuso de alguma forma, como nos casos em que não conseguiu esboçar reação. 

No que se refere à culpa que muitas vítimas experimentam, entende-se que depende de aspectos individuais e pode se originar por inúmeras causas. Embora não tenha responsabilidade legal pelo abuso, a vítima pode sentir-se culpada, por exemplo, por manter afeto ou proximidade com o agressor. Pode ainda sentir-se mal por não ter percebido o caráter perverso da interação a tempo de se proteger ou por ter tido alguma sensação fisicamente agradável durante o abuso, a despeito do desconforto emocional que a situação lhe causou.

Vemos que, em muitos casos, esse tipo de culpa nasce da ideia de que seria possível fazer as coisas de forma totalmente diferente. Olhando em retrospectiva, a pessoa se imagina capaz de estar mais alerta, de reagir de outro modo e de se autoproteger. É preciso entender que tais hipóteses partem de uma análise posterior, feita com elementos que a pessoa não tinha antes da agressão e, nesse sentido, constituem uma fantasia que não seria viável na prática. 

Além disso, nem sempre o abuso envolve violência física e muitos agressores investem seus recursos em um longo processo de aliciamento, a partir do qual identificam os pontos fracos de seu alvo, bem como as condições mais favoráveis para agir. Diante disso, podem se mostrar extremamente gentis e amáveis, carinhosos e companheiros, atitude que cria um vínculo de confiança, diminui a resistência da vítima e confunde sua percepção, possibilitando a conclusão do ato abusivo.

É importante saber que a culpa sentida pela vítima não só amplifica seu sofrimento, mas também dificulta a elaboração do trauma gerado pela experiência abusiva. Esse sentimento merece o cuidado profissional e pode ser devidamente trabalhado dentro de um processo psicoterapêutico. 

No que diz respeito à culpa por parte do agressor, cabe a devida punição legal, a partir da qual ele pode quitar sua dívida com a sociedade.

Juliana Borges Naves

11 de agosto de 2021Comments are off for this post.

Silêncio sobre os Abusos: estratégias dos agressores para evitar a revelação da violência sexual

Garantir que uma vítima de abuso sexual permaneça em silêncio sobre a violência interessa enormemente ao agressor. Em primeiro lugar, a situação é vantajosa para ele porque a criança continua submetida a seus atos, oportunizando repetições dos episódios abusivos. Além do mais, quando a vítima não revela o problema vivenciado, é menor o risco de que o abusador seja exposto socialmente, denunciado e preso.

Por si só, os casos de violência sexual são difíceis de serem trazidos à tona pelas crianças e adolescentes. Tratam-se de ocorrências que provocam grande desorganização psicológica e que mobilizam sentimentos de medo, ansiedade, vergonha e culpa. Frente ao trauma, normalmente as pessoas evitam pensar sobre o evento adverso e, para as vítimas, é bastante complicado administrar o impacto emocional, encarar a necessidade de rememorar as cenas de violência e falar sobre elas para terceiros. Isso tudo costuma ser suficiente para que crianças e adolescentes submetidos a abusos demorem, ou até mesmo, nunca revelem sobre essa experiência. 

Não bastasse essa limitação para as vítimas contarem o problema, os agressores sexuais costumam usar de estratégias diversas para minimizar as possibilidades de que os abusos sejam explicitados. Uma de suas táticas mais frequentes para isso envolve a realização de ameaças à integridade física da criança/adolescente ou de pessoas que ela ama. Nesses casos, as vítimas são intimidadas por meio de frases como: “Se você contar para alguém, vou te dar uma surra”, “eu te mato” ou “eu mato a sua mãe”.

A chantagem emocional é outra maneira que alguns abusadores adotam para forçar a vítima a esconder sobre a violência. Nesses casos, a manipulação costuma funcionar quando há vínculo afetivo entre ele e a criança, ou ainda, quando a família depende financeiramente dele. Assim, o agressor alerta a vítima de que ele pode ser preso pelos abusos, sendo que será culpa dela se ele for afastado da convivência em casa ou se a mãe e os irmãos não tiverem recursos para se manterem.

Outra alternativa explorada pelos agressores para manter as crianças caladas sobre os abusos sofridos envolve a sedução de suas vítimas através de benefícios materiais. Aqui, eles negociam pelo segredo sobre a violência oferecendo presentes, dinheiro, doces ou outros tipos de itens que sejam atrativos aos pequenos. Podem, deste modo, usar barganhas como: “Não fala disso com ninguém e te dou um telefone celular”.

Além das inúmeras táticas já mencionadas, para garantir que a criança não revele um abuso, o agressor muitas vezes procura convencer a vítima de que, por ser adulto, ele tende a ter mais credibilidade que alguém mais novo. Tendo em vista que nossa cultura é adultocêntrica e que as crianças são ensinadas a sempre obedecerem aos mais velhos, é usual que as vítimas se sintam receosas em se posicionarem contra um adulto. Os abusadores se aproveitam desse temor e lhes dizem coisas, tais como: “Se você falar algo sobre isso, vão dizer que você é mentirosa” ou “Ninguém vai acreditar em você”.

É devido às circunstâncias aqui discutidas que estimulamos os pais a criarem um ambiente de diálogo permanente em casa. A confiança em seus genitores, o acolhimento recebido cotidianamente por parte deles e a compreensão de que eles são preparados para protegê-las, facilita com que as crianças exponham sobre suas experiências ruins, ainda que estejam sob pressão. Construído aos poucos, é esse tipo de suporte emocional que ajuda que situações abusivas sejam reveladas muito precocemente, eliminando o contexto de segredo e silêncio tão interessante aos agressores. 

Liliane Domingos Martins

4 de agosto de 2021Comments are off for this post.

Como acontece o aliciamento e abuso sexual on-line

As crianças e adolescentes de hoje comumente são chamados de nativos digitais, uma vez que, desde que nasceram, as tecnologias digitais estão presentes em sua vida. Desse modo, desde muito cedo esses jovens frequentam o imenso espaço público social chamado internet. 

Apesar da grande familiaridade com as diversas ferramentas tecnológicas, não se pode considerar que os nativos digitais tenham essa mesma habilidade para avaliar e gerenciar os riscos existentes nestes espaços. O domínio tecnológico não anda de mãos dadas com a capacidade crítica, estas são habilidades/aptidões distintas. Nesse sentido, é importante que adultos entendam os riscos e saibam como orientar seus filhos a respeito disso. 

Sendo a internet um espaço democrático e livre, existem pessoas que fazem uso disso para enganar, seduzir ou induzir crianças e adolescentes a acessar conteúdos inadequados, como por exemplo a pornografia. Além disso, algumas vezes esses jovens são encorajados a enviar fotos e informações pessoais com propósitos duvidosos. Em alguns casos, são incitados até mesmo a encontros presenciais. 

Em geral, os abusadores sexuais usam ferramentas de bate-papo como os chats de jogos on line, as redes sociais, ou aplicativos de troca de mensagens para se aproximarem dos jovens. Ali, se aproveitando do anonimato, essas pessoas podem se passar por adolescentes, por crianças da mesma idade ou um pouco mais velhas, para atrair o interesse com assuntos que agradam suas vítimas potenciais. 

De modo geral, a abordagem pela internet costuma ser sutil e disfarçada. Os abusadores gastam um longo tempo na seleção, abordagem e no envolvimento da vítima, colocando em ação um processo chamado de aliciamento. A partir daí, constroem uma amizade, pautada em conversas sobre assuntos de interesse da criança/adolescente (jogos, esportes, personagens infantis, artistas de interesse do adolescente, etc), elogios, encorajamento para conversas mais privadas. Muitas vezes, os abusadores seduzem com promessas que parecem tentadoras às vítimas (por exemplo, apresentar algum famoso ou alguém que possibilita a realização do sonho do jovem; presentear com coisas materiais, como compra de itens/acessórios para jogos online, etc).

Quando já existe uma relação de amizade estabelecida, o abusador passa a focar no aumento da intimidade com a vítima e na introdução gradativa de material sexual. Tudo começa com perguntas inocentes como “você já foi beijada?”, “você tem namorado?”. Em alguns casos, pode se tornar um conselheiro amoroso/sexual. 

Com o passar do tempo, o abusador envia fotos pornográficas para estimular a fantasia e a curiosidade da criança, assim como diminuir sua inibição. O passo seguinte é pedir que a criança/adolescente produza fotos ou vídeos mostrando partes do corpo ou simulando alguma cena sexual. 

Assim, o conteúdo sexual que inicialmente era moderado, aos poucos se torna mais explícito. Existem casos em que o abusador ensina a criança a se masturbar ou tenta progredir para um encontro pessoal e contato sexual real. Todas as etapas envolvem muitos elogios, encorajamento positivo e clima de descontração e amizade. O objetivo é não causar medo na vítima, para que ela não revele o segredo.

É comum que, em determinada etapa dessa aproximação, a vítima se sinta desconfortável e queira parar o contato ou se negue a enviar algum material íntimo. Nessas situações, muitos abusadores mudam a estratégia e passam a utilizar as imagens que possuem para chantagear as vítimas em busca de mais fotos/vídeos ou de encontros, sob ameaça de divulgação. 

Sentindo-se culpada e com vergonha por ter tirado fotos/vídeos, comumente a vítima não tem coragem de buscar ajuda, especialmente dos pais. Não querendo que outras pessoas tenham acesso àquele material íntimo, alguns jovens se tornam reféns do abusador que passa a chantagear e ameaçar a criança e a sua família. 

Esse é um dos principais e mais comuns cenários de abuso sexual on-line. E o que fazer diante disso? Conversar e orientar os filhos sobre esse tipo de risco é um dos primeiros passos. Pesquise e aprenda sobre segurança na internet e formas de orientar crianças e adolescentes sobre o assunto. Estabeleça uma relação de confiança que permita esse tipo de conversa e lembre-se: conhecimento é proteção. 

Silvia Pereira Guimarães

28 de julho de 2021Comments are off for this post.

Como falar de violência sexual sem assustar as crianças

Boa parte das pessoas se choca com o fato de que haja adultos capazes de abusar sexualmente de crianças e a dificuldade em lidar com essa possibilidade é tanta que muita gente nem mesmo pensa sobre esse assunto. Entretanto, negar a realidade não faz com que ela mude e se a gente quer mesmo proporcionar alguma segurança para as crianças que a gente ama, não tem jeito, é preciso enfrentar o problema.

Quanto ao que uma família pode fazer para proteger os seus, orientações em termos de prevenção da violência sexual são fundamentais. Mas como falar sobre isso sem assustar as crianças?

No que diz respeito à segurança delas, quantos assuntos já não tratamos de forma corriqueira, a partir de ações do dia a dia? Não é assim que introduzimos hábitos de higiene, orientamos sobre os cuidados necessários para atravessar a rua ou para evitar acidentes como choques ou queimaduras? Da mesma forma, a preocupação com os perigos do abuso sexual deve estar presente no nosso cotidiano. 

Vemos que, em geral, as orientações nesse sentido costumam se resumir à informação de que as crianças não devem conversar com estranhos. Mas como sempre falamos por aqui, a maioria dos atos de assédio parte de familiares ou de pessoas próximas à vítima, o que torna esse tipo de precaução praticamente inútil para evitar que o abuso aconteça. 

Estratégias efetivas de prevenção envolvem educação em sexualidade, ou seja, estímulo para que as crianças tenham autonomia sobre o próprio corpo, sejam validadas quanto aos próprios sentimentos, identifiquem situações prazerosas e desprazerosas, bem como desenvolvam estratégias de autoproteção no seu contato físico ou afetivo com os outros. 

Uma atitude simples, mas que ajuda muito, é ensinar, o quanto antes, a criança a nomear todas as partes do corpo. Além disso, desenvolver a ideia de que algumas dessas partes são íntimas e não devem ser tocadas senão em situações específicas, caso precisem de ajuda. Nessa lógica, ainda que a família utilize apelidos para se referir à vulva e ao pênis, por exemplo, é importante que se oriente quanto aos nomes mais técnicos, para que a criança possa ser compreendida, caso precise reportar alguma situação abusiva.

A noção de privacidade também é fundamental. É necessário orientar que algumas coisas ou momentos são íntimos e devem ser respeitados. Por isso, em público usamos roupas de banho, calcinha ou cueca e fechamos a porta quando estamos no banheiro, por exemplo.

Nesse ponto, cabe esclarecer que a curiosidade sobre a diferença entre meninos e meninas surge naturalmente por volta dos três anos de idade, quando as partes íntimas passam a chamar maior atenção. É a época das perguntas constrangedoras, bem como dos atos de manipulação dos genitais, que tanto assustam muitas famílias. Essa preocupação muitas vezes é infundada, haja visto que a estimulação da vulva ou do pênis é uma atividade típica da criança nessa época e tem natureza diversa do que conhecemos propriamente como masturbação. No caso das crianças, tal comportamento tem como base a curiosidade em conhecer o próprio corpo e em experimentar as sensações de bem estar que este pode proporcionar, sem o componente erótico que integra a experiência de masturbação na fase adulta. 

Nesse contexto, é importante trabalhar com os pequenos a ideia de que é natural que sinta algumas sensações quando toca aquela parte do corpo, mas que se trata de uma área sensível, com a qual precisa lidar com certos cuidados, como delicadeza e higiene. Fundamental é reforçar a noção de que se trata de uma parte íntima, que só deve ser tocada por ela e mais ninguém, com raras exceções. Ademais, também deve-se orientar que a automanipulação deve ocorrer de forma privativa e não à vista das demais pessoas.   Com o tempo, esse comportamento tende a perder a frequência para as atividades cognitivas que integram a fase posterior, quando a atenção da criança se volta para as relações de amizade e a aquisição de conhecimento.

Outra ação preventiva que pode ser feita no dia a dia da família é o estímulo ao diálogo e o estabelecimento de um vínculo de confiança com as crianças.  Isso pode ser feito a partir de perguntas rotineiras sobre os acontecimentos do dia e sobre seus sentimentos. Aqui, o importante é construir perguntas livres, de forma que se sintam interessadas em respondê-las. Além disso, cumpre dizer abertamente que podem pedir ajuda sempre que precisarem, pois serão invariavelmente apoiadas. Tudo isso pode ajudar muito para que nossos pequenos não se sintam desamparados diante dos problemas que vierem a surgir.

Juliana Borges Naves

21 de julho de 2021Comments are off for this post.

Problemas dos Testes de Virgindade

A virgindade é um conceito construído socialmente em torno da primeira experiência sexual. Para as pessoas do sexo feminino, a ideia de “perder a virgindade” usualmente está atrelada ao hímen, que é uma membrana que recobre parcialmente a área interna da genitália feminina e que, supostamente, se rompe com a penetração sexual.  

Baseado nesse entendimento, é comum que crianças e adolescentes sob suspeita de vitimização sexual sejam encaminhados para exames dedicados a avaliar se foram submetidas à penetração. Tais exames consistem na inspeção do órgão genital de meninas para verificar, a partir da aparência das estruturas dessa região corporal, se há anormalidades do hímen, como lacerações, cicatrizes, perfuração, alargamento do canal ou outros tipos de lesões resultantes de violação íntima.

Na nossa experiência, é comum observar que, ante a uma denúncia de abuso sexual contra uma criança ou adolescente, a família se sinta tranquilizada pelo resultado desse tipo de exame quando não são encontrados indícios físicos que confirmem a violência. Acreditam que isso significa que a criança ou adolescente não foi molestado, o que normalmente não condiz com a realidade.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a violência sexual contra crianças e adolescentes nem sempre envolve contato físico e, nessas condições, obviamente não será possível identificar qualquer sinal corporal que evidencie o abuso. Além disso, a literatura científica tem apontado problemas com os exames acima referidos. Uma série de estudos recentes tem demonstrado que, mesmo quando a vítima alega que a violência ocorreu com a penetração de dedo ou pênis em sua vagina ou ânus, são enormemente frequentes os casos em que nenhum indício do estupro aparece. Isso se dá por vários fatores, como pela rápida capacidade de regeneração das mucosas em crianças e adolescentes e, especialmente, porque há tantas variações na constituição himenal que é muito difícil discriminar suas variações anatômicas.

Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se posicionou contrária às avaliações médicas que envolvem análise da integridade do hímen para conclusões sobre virgindade, isso mesmo em casos de violência sexual. Além de considerar as questões já postas por esse texto, a entidade acrescenta que esses exames são invasivos, de forma que têm efeito revitimizante sobre vítimas de violência sexual e constituem-se em violações aos direitos humanos. Ao exposto, coloca ainda que, a despeito da insuficiência das conclusões que oferecem, os exames de virgindade tendem a ser amplamente aceitos pelos tribunais, em detrimento da palavra da vítima e em favor do agressor, que muitas vezes se mantém impune.

De modo geral, existe um movimento global para a abolição dos exames de virgindade, fortemente apoiado pela comunidade científica. Não há razão para que esse tipo de prática continue a ser empregada e, sendo assim, é importante que pais e profissionais estejam cientes acerca de suas limitações para evitar conclusões sobre denúncias de abuso tão somente com base nessas avaliações. 

Liliane Domingos Martins

14 de julho de 2021Comments are off for this post.

Os dois pontos fundamentais da prevenção ao abuso sexual de crianças

Como já falamos aqui por várias vezes, o abuso sexual de crianças é uma realidade extremamente frequente em nossa sociedade. Os dados oficiais do governo, ainda que subnotificados, apontam para um número alarmante de meninas e meninos com idades inferiores a 14 anos vitimados. 

Diante desse quadro, ressaltamos que o conhecimento é o que propicia a adoção de posturas protetivas contra a violência sexual infantojuvenil. Existem dois pontos fundamentais nos quais se baseia o viés preventivo: a educação sexual da criança e o estabelecimento de vínculos de confiança. 

Mas o que isso quer dizer?

Isso quer dizer que é importante que crianças e adolescentes recebam educação sexual desde cedo, de forma adequada e em linguagem apropriada para sua faixa etária. Educação em sexualidade não é falar sobre sexo, mas sim falar sobre o corpo, sobre autocuidado e autoproteção. Quando são ensinados temas como consentimento, desenvolvimento e integridade corporal, a diferença entre toques agradáveis/permitidos e os toques desagradáveis/invasivos, as crianças e adolescentes se tornam menos vulneráveis a violações sexuais. 

Isso significa que tratar a sexualidade como tabu ou como assunto que não pode ser conversado dificulta a proteção dos mais jovens. Quando a criança não conhece o próprio corpo e não se apropria dele, apresenta maior dificuldade em reconhecer uma aproximação abusiva e impor limite. Quando ela conhece seu próprio corpo, tem mais chance de perceber quando sua privacidade está sendo violada e, a partir daí, buscar ajuda, relatar seu incômodo a um adulto de confiança, ou até mesmo reagir àquela situação. 

O segundo ponto fundamental da prevenção ao abuso sexual refere-se ao estabelecimento de vínculos de confiança. Isso aponta para a importância da construção de uma relação de amparo e liberdade entre a criança e o adulto de referência (que pode ser a mãe, o pai, algum familiar ou outra figura protetiva). Trata-se de um relacionamento em que a criança se sente segura para dizer abertamente o que está lhe incomodando, inclusive sobre temas da sexualidade, sabendo que aquele conteúdo será escutado e não castigado ou reprimido. 

Nesse tipo de ligação, o adulto tem a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento da criança, podendo identificar, por exemplo, quando ela está vivendo um momento de angústia e sofrimento. A partir daí, é possível estabelecer um diálogo que lhe permita falar, relatar o que está acontecendo. Cabe ao adulto aprender a escutar a criança sem repreendê-la ou humilhá-la, mas entendendo que aquilo que ela expressa é algo relevante para ela. 

É importante lembrar que, com relativa frequência, abusos sexuais acontecem de forma gradativa, em um crescente de avanços sexuais. Quando a criança tem uma figura de referência a quem ela consegue dividir os acontecimentos do dia a dia e suas dificuldades, em uma situação de uma aproximação inadequada, ela poderá compartilhar seu incômodo mais precocemente, possibilitando que sejam tomadas as providências que irão afastar um provável abusador. Quando a criança não tem um adulto de sua confiança a quem recorrer, ela se torna mais vulnerável a aproximações abusivas.

Por fim, temos que entender que a chave para a proteção das crianças e adolescentes contra as violações sexuais está nas mãos dos adultos. As melhores estratégias preventivas encontram-se na educação sexual que será oferecida à criança e na construção de uma relação de confiança. A via da proteção não é fácil, nem rápida, mas é fundamental. Ela requer conhecimento e sensibilidade. Ela exige tempo e paciência. Ela demanda constância e amor. 

Silvia Pereira Guimarães

7 de julho de 2021Comments are off for this post.

Quem tem medo da educação sexual?

Atualmente, falar sobre educação sexual pode gerar polêmica, principalmente porque muita desinformação acabou contaminando esse tema tão importante, fundamental para o desenvolvimento e para a proteção de nossas crianças e adolescentes. 

Antes de mais nada, vale esclarecer que educação sexual ou educação em sexualidade nada tem a ver com tratar de assuntos eróticos com crianças, de estimulá-las ao sexo ou a influenciar quanto à orientação de gênero. Esse tipo de equívoco parte de um desconhecimento grave e muitas vezes preconceituoso sobre o assunto. 

Para começo de conversa, é preciso ter em mente que a sexualidade humana é bastante ampla e não se resume à atividade sexual propriamente dita, que é apenas uma das expressões possíveis da sexualidade na fase adulta. O que entendemos por sexualidade envolve a capacidade que cada ser humano tem de se relacionar afetivamente com o mundo e com os outros, na busca de prazer e de bem estar. 

A sexualidade está presente desde o nascimento e se manifesta, em cada fase, de uma maneira específica. A satisfação que um bebê tem ao ser aconchegado e alimentado, por exemplo, tem a ver com sexualidade, assim como o ciúme que a criança sente de seus brinquedos ou dos pais, a partir da chegada de um irmãozinho. A sexualidade compreende o estabelecimento de vínculos, o investimento de afeto e a busca de cada pessoa por evitar o desprazer.

Dizer que não só os adultos, mas também as crianças têm sexualidade é considerar que, desde bebês, temos um corpo completo, capaz de experimentar sensações variadas a partir dos estímulos externos. Assim, muito precocemente, o contato dos outros com nosso corpo, nos momentos de cuidado, por exemplo, gera efeitos, tanto no plano físico quanto no psíquico. 

Além disso, também compõe a sexualidade a relação de cada um consigo mesmo, a aquisição de uma imagem corporal e as marcas deixadas pelas experiências de satisfação e insatisfação. 

Cada fase da vida implica em uma expressão correspondente de sexualidade. A esse respeito, é importante conhecermos os interesses e comportamentos típicos de cada etapa de desenvolvimento, tanto para que possamos confirmar nossas crianças em experiências que para elas são importantes, quanto para sermos capazes de identificar sinais de conflito a partir de comportamentos atípicos.

Cabe ressaltar que a sexualidade infantil é bastante diferente da dos adultos. Assim, mesmo ações que por vezes são interpretadas como sexualizadas, como a manipulação dos genitais ou os jogos sexuais infantis, têm natureza diversa da masturbação e da relação sexual propriamente dita. Na criança, esses comportamentos costumam se dar a partir da curiosidade sobre o próprio corpo e sobre o corpo do outro, sem o componente erótico que compõe a sexualidade genital. Em razão disso, o contato de crianças com cenas de sexo explícito ou pornografia tende a ser traumático, pois tal conteúdo excede a capacidade delas de elaboração psíquica e emocional.

Entender a sexualidade infantil e compreender as peculiaridades da sexualidade na adolescência pode ajudar enormemente na orientação de nossos pequenos, no estabelecimento de um diálogo franco e na efetiva prevenção do abuso sexual.

Juliana Borges Naves

30 de junho de 2021Comments are off for this post.

Privacidade x Segredo: o que é cada um

Privacidade e segredo são duas coisas bem diferentes. Ambos fazem parte da vida das pessoas, mas é importante entender a distinção entre eles quando se busca cuidar de crianças e adolescentes contra abusos sexuais. 

A privacidade refere-se a certas experiências que os filhos têm sozinhos, mas que os pais sabem a respeito. Por exemplo, a maior parte das pessoas prefere ter privacidade ao usar o banheiro, seja para tomar banho ou usar o sanitário. Essas são situações em que nossas partes íntimas estão expostas e, como sabemos, o ideal é que terceiros não toquem ou vejam essas áreas do corpo dos outros. Sendo assim, as crianças são estimuladas desde novas a serem independentes quanto aos hábitos de higiene, de forma a dispensarem ajuda e a garantirem a própria privacidade nesses momentos.

No desenvolvimento da sexualidade, a exploração dos próprios genitais pela criança, no sentido da curiosidade e da geração de sensações,  é outro hábito natural, com os quais os pais não precisam se chocar. Caso não identifiquem anormalidades nessa prática, devem dar espaço para esclarecer as dúvidas dos filhos sobre o assunto e, principalmente, orientá-los de que tal comportamento deve ser sempre privado. Isso significa que os toques da criança em seus órgãos genitais devem ser realizados em locais isolados e sem contato com outras pessoas. Elas não podem, assim, fazer isso na escola, na frente de colegas ou de qualquer um mais velho.

Dessa maneira, a privacidade é assumida como algo bom, que permite ao indivíduo se conhecer melhor, a aprender sobre seus limites e sobre a importância de que respeitem seu espaço pessoal e momentos mais particulares, tudo isso feito de forma segura. De modo oposto, o segredo não costuma ser algo positivo, já que  ele surge de situações em que as crianças e adolescentes estão amedrontados ou constrangidos demais para contar aos pais sobre o que se passou.

Crianças que temem seus genitores, que têm receio de apanhar ou de sofrerem castigos severos procuram guardar segredos de seus pais como meio de evitar tais punições. Do mesmo jeito, aquelas que não têm um diálogo próximo e fácil com os seus responsáveis podem se sentir desconfortáveis para esclarecer sobre situações que envolvam as próprias descobertas sexuais, as dúvidas quanto ao tema, ou mesmo, para comunicar sobre qualquer aproximação abusiva.

Nesses casos, o segredo representa uma ameaça à segurança das crianças ou adolescentes, pois eles ainda não têm capacidade suficiente para, sem ajuda, dimensionar os riscos de algumas circunstâncias a que são expostos. Os pais, por sua vez, quando desconhecem as situações vividas por seus filhos, não têm como avaliar os problemas que lhes acometem, de onde vêm ou o quanto são perigosos. Em consequência, também não conseguem tomar as providências necessárias para manter suas crianças mais protegidas quanto a essas experiências ruins. Tal quadro faz com que os infantes tornem-se alvos fáceis de pessoas mal intencionadas e que, inclusive, estimulam a manutenção de segredos em relação aos pais. Isso é algo frequente em episódios de violência sexual.

Participe ativamente da vida dos seus filhos, demonstre interesse pelo que fazem, converse com eles sobre atividades cotidianas e permitam também que tenham momentos a sós. Esse tipo de atitude fortalece a identidade e individualidade das crianças e adolescentes, e melhor ainda, fortalece os laços entre pais e filhos. Quando essa relação de proximidade, diálogo e confiança é construída, há menos espaço para segredos e é possível que todos permaneçam mais resguardados contra qualquer forma de violência.

Liliane Domingos Martins