17 de março de 2021Comments are off for this post.

Profissionais Acolhendo Relatos de Abuso: as diferenças entre escuta especializada e depoimento especial

A legislação brasileira teve um importante avanço recente no que se refere ao acolhimento de relatos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Até então, eram relativamente frequentes os episódios de violência institucional, nos quais profissionais mal preparados acabavam por ampliar o sofrimento das vítimas com pressões, preconceitos e outras condutas inadequadas, que comprometiam a confiabilidade das narrativas. Ante a esses problemas, a Lei N° 13.431/17, que vem sendo conhecida como Lei da Escuta Protegida, definiu sobre estratégias de abordagem que devem ser observadas por todos aqueles que trabalham em contextos nos quais são responsáveis por ouvir crianças ou adolescentes envolvidos em situações abusivas. Dentre essas estratégias, vamos aqui apresentar sobre a escuta especializada e o depoimento especial, indicando as diferenças entre ambas.

A escuta especializada é o procedimento que deve ser realizado mais frequentemente, já que é indicada para praticamente todo profissional que compõe a rede de proteção, sejam conselheiros tutelares, professores, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc. O princípio fundamental da escuta especializada envolve o livre relato, ou seja, a estimulação da criança ou adolescente para que fale sobre os episódios de violência com o mínimo de intervenção e, quando algum esclarecimento for necessário, que seja feito por meio de perguntas abertas e não diretivas. Além disso, é essencial ter claro que a escuta especializada é limitada em sua coleta de dados e não visa a produção de provas, o que significa que tal abordagem deve abranger apenas o estritamente necessário para o cumprimento de sua finalidade, que é tão somente de acolhimento, provimento de cuidados e encaminhamento.

Quanto ao depoimento especial, é comum que, equivocadamente, alguns profissionais documentem ter usado esse tipo de procedimento para ouvir uma criança ou adolescente. A ideia, provavelmente, é de garantir que cuidou-se contra práticas revitimizantes ou para evitar a sugestionabilidade do discurso da vítima, mas, tendo em vista que é essencial sempre estar atento a tais questões, essa não é a especificidade do depoimento especial. O depoimento especial é, na verdade, um modelo de oitiva de crianças e adolescentes exclusivo a autoridades policiais ou judiciárias. Além disso, o depoimento especial tem uma formatação bastante particular, de modo que, mesmo nos órgãos com essas competências, certas características devem ser resguardadas para que a entrevista com a vítima receba esse nome. 

De modo geral, é preciso saber que o procedimento de depoimento especial tem dois objetivos principais. O primeiro deles, é o de evitar que a vítima seja repetidamente ouvida sobre um tema tão difícil como a violência sexual. Tendo isso em vista, a sessão é gravada em áudio e vídeo, o que permite que outros profissionais tenham acesso às informações prestadas, sem a necessidade de acionar novamente aquela criança ou adolescente. Nessa gravação está contido o registro da conversa realizada entre a vítima e um expert, que faz uso de um protocolo de entrevista forense e que é habilitado para mediar as perguntas de uma sala de audiência para a criança ou adolescente, adaptando a linguagem para o nível de desenvolvimento dela. Ambos encontram-se isolados em um recinto separado, mas a vítima está ciente de que aquele encontro está sendo acompanhado por vários outros interessados. 

Isso conduz ao segundo objetivo do depoimento especial, que, dentro do rito processual, visa garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório por parte do investigado. Para tal, a oitiva precisa ser realizada conforme uma audiência judicial, com a presença de juiz, promotor, advogados e aquele que foi apontado como responsável pela violência. Esses atores assistem à entrevista com a vítima enquanto ela acontece e podem encaminhar seus questionamentos, isso em conformidade com o que foi mencionado logo acima.

Além da Lei N° 13.431/17, o Decreto N° 9.603/2018 instituiu princípios ainda mais específicos para a realização da escuta especializada e do depoimento especial. Os dois documentos destacam-se como dispositivos históricos, concentrados no melhor interesse de crianças e adolescentes e que devem ser conhecidos por todo profissional que lida com esse público em suas rotinas de trabalho. Sabemos que pode ser bem difícil receber relatos de violência, principalmente por parte de nossos pequenos, mas, quando você está ciente sobre seu papel nisso e sobre como conduzir a situação, é provável que essa tarefa seja um pouco menos intimidante. Fique atento à legislação!

Liliane Domingos Martins

10 de março de 2021Comments are off for this post.

Por que devemos evitar beijar a criança na boca?

O beijo na boca entre pais e filhos é um tema que, de tempos em tempos, volta a ser palco de discussão. Independentemente da polêmica ou das questões morais que muitas vezes assumem o tom dessa questão, é importante estar atento aos aspectos psicológicos desse comportamento para a criança e dos riscos que ele traz. 

É comum que os pais, em suas expressões cotidianas de amor pelos filhos, nas demonstrações de carinho, deem beijos na boca da criança, que rapidamente são correspondidos por ela. A intenção, certamente, é de um comportamento amoroso e inocente, que expressa o vínculo existente entre eles. 

Contudo, é importante lembrar que, desde o momento do nascimento, somos seres em desenvolvimento. Assim, as noções de afeto e de sexualidade da criança são bastante distintas das do adulto e encontram-se em franco processo de amadurecimento. Aquilo que é percebido como carinho, como demonstração de afeto, como permitido ou não, vai sendo construído paulatinamente, a partir de suas primeiras relações.

Quando a criança aprende desde bebê a beijar os pais na boca, ela vai associando esse comportamento a algo bom, que se faz com pessoas que gosta. Desse modo, haverá uma forte tendência a reproduzir esse tipo de ação com outras pessoas que gosta: com os coleguinhas da escola, com a professora, com a babá, com outros adultos ao seu redor. 

Nesse sentido, a criança pode se tornar um alvo fácil para uma pessoa mal intencionada, que queira se aproveitar dessa conduta. Uma vez que o beijo na boca é algo natural para aquela criança, um abusador sexual buscará utilizar isso em benefício próprio, dessensibilizando a criança para atos cada vez mais erotizados. 

Por isso é tão importante que a criança aprenda desde muito cedo que há comportamentos que são de crianças e há comportamentos que são de adultos. Assim, fica claro que existem carinhos que são trocados apenas entre adultos. Beijo na boca é um comportamento de adulto, é algo que os adultos fazem quando se gostam, quando namoram etc. Já as crianças demonstram carinho abraçando, pegando na mão, dando beijos no rosto ou na bochecha.  

Eventualmente, esse tipo de regra pode parecer exagero, pois os pais têm certeza de que a criança está em um ambiente seguro, que está apenas “em família” e que “não tem maldade nenhuma” no beijo na boca que dão em seus filhos. 

Ainda assim, é preciso entender que a criança não tem esse limite claro, do que é seguro, na cabeça dela. Ao contrário, essas noções estão sendo construídas. Ainda que existam diferenças claras de significados entre um beijo na boca de um casal e um “selinho” de carinho, esses limites não estão bem estabelecidos nos anos iniciais da vida. Apenas em uma fase mais avançada de desenvolvimento a criança consegue ter uma compreensão global sobre isso.   

Um ponto que vale a pena lembrar é que a boca é uma zona erógena do corpo que provoca sensações de prazer. Então, sendo o beijo na boca um comportamento natural, com o tempo, algumas crianças podem passar a repetir esse gesto com várias outras pessoas, simplesmente porque é bom. 

Além disso, na nossa sociedade, o beijo na boca tem uma conotação sexual, pois é a forma como um casal que possui alguma ligação erótica demonstra o afeto. Aos poucos, na medida em que cresce, a criança vai percebendo o sentido que o beijo na boca tem para outras famílias ou grupos sociais. Esses limites entre o que tem conotação afetiva e o que tem conotação sexual pode se tornar uma fonte de confusão e angústia para ela. 

Silvia Pereira Guimarães

3 de março de 2021Comments are off for this post.

Abusos sexuais cometidos por mulheres

É complicado aceitar a ideia de que mulheres são capazes de abusar de crianças e adolescentes. De maneira geral, a condição feminina é bastante idealizada na nossa cultura e as mulheres são tidas como frágeis, naturalmente maternais e amorosas. Consequentemente, não são consideradas suspeitas de atos de violência sexual, especialmente em relação a crianças com quem têm vínculo familiar ou de cuidado. 

Embora esse seja um assunto pouco comentado, parte significativa dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes é cometida por mulheres. As estatísticas não são precisas, mas estima-se que de 2 a 25% das ocorrências de abuso infantojuvenil envolvam agressoras do sexo feminino. Considerando os casos que chegam a ser denunciados, a prevalência gira em torno de 5%. 

Como é possível imaginar, uma dificuldade ao lidar com o problema é que esses são abusos mais difíceis de detectar. Como mães e cuidadoras têm acesso constante ao corpo da criança nos momentos de higiene, por exemplo, toques abusivos, inseridos nesse contexto, podem passar despercebidos por anos. 

Assim como ocorre com os  agressores do sexo masculino, não há um perfil específico para as autoras de violência sexual. Elas compõem um grupo heterogêneo, com características e motivações variadas para a prática do abuso.

Sobre as agressoras que abusam dos próprios filhos, há as que agem de forma sedutora, estimulando sexualmente a criança sem usar força ou causar sofrimento físico. Nesses casos, a vítima muitas vezes demora a compreender o caráter abusivo da relação, já que a violência sexual se mistura com atos de cuidado e carinho, levando a criança a acreditar que aquela é uma forma natural de interação.

Mas há também as mães que agem de forma cruel e sádica, provocando dor ou humilhação e recorrendo a ameaças para manter a situação em segredo. Nesses casos, tendem a apresentar baixo nível de escolaridade, dificuldade em estabelecer relacionamentos sociais adequados, dependência química ou transtornos mentais.

Temos, ainda, mulheres que cometem violência sexual inicialmente coagidas pelos parceiros mas, com o tempo, passam a abusar de crianças por iniciativa própria.

No que se refere à violência sexual de mulheres contra adolescentes, há aquelas que romantizam o envolvimento e se tornam amantes de rapazes bem mais novos. Essa é uma situação complexa se levarmos em consideração os ideais ligados à masculinidade, que incentivam o homem a corresponder sempre de forma viril quando provocado por uma mulher. Nesse contexto, muitos jovens podem se sentir acuados e obrigados a aceitar o abuso por pressão social. Na mesma lógica, dificilmente serão capazes de admitir abertamente seu sofrimento ou denunciar a situação sexualmente abusiva. 

Juliana Borges Naves

24 de fevereiro de 2021Comments are off for this post.

Mito: o abuso sexual só ocorre em famílias pobres e desestruturadas

É um equívoco considerar que o abuso sexual só ocorre em famílias com menor poder aquisitivo ou naquelas em que os conflitos são cotidianos. É claro que a pobreza pode sim representar um complicador para esse tipo de violência quando se pensa, por exemplo, que a estrutura física das casas muitas vezes não favorece a privacidade, com ambientes sem porta, ou com várias pessoas coabitando em um mesmo local. Do mesmo modo, familiares que brigam com frequência e se desrespeitam demonstram propensão a desconsiderar as necessidades de seus pares, tornando o contexto mais suscetível a atitudes indevidas uns contra os outros e, deste modo, mais suscetível a abusos. 

Apesar dessas condições, sabe-se que a violência sexual contra crianças e adolescentes é comum mesmo em famílias que demonstram ser bastante organizadas e funcionais. O problema alcança mesmo aqueles grupos familiares que parecem acima de qualquer suspeita, que se mostram bem integrados à sociedade, que vão à igreja, são educados com todos, em que os pais são bem sucedidos e queridos na vizinhança, etc. 

De forma geral, os casos de violência doméstica, incluindo o abuso sexual, costumam aumentar ante a crises sociais e econômicas. Isso foi confirmado pelas notícias desse ano de 2020, quando o problema aumentou em função da pandemia do corona vírus, com a necessidade de isolamento, instabilidade salarial e nos altos índices de desemprego. Além disso, fatores psicológicos, psiquiátricos, educação adultocêntrica e machista, além de certas dinâmicas das relações familiares também podem aumentar os riscos de violência sexual. Sobre esse conjunto de fatores, nenhuma família está necessariamente imune porque tem boas condições financeiras ou porque seus membros são sempre cordiais entre si.

 É preciso estar alerta, portanto, para o fato de que o alcance desse tipo de crime muitas vezes se estende a contextos improváveis. Abusos sexuais podem ocorrer em qualquer lugar e, quando você está ciente sobre isso, dificilmente vai ser pego de surpresa, pois, se prepara melhor para identificar o problema e educa o seu filho para saber como perceber e reagir a qualquer situação desconfortável.

Liliane Domingos Martins

17 de fevereiro de 2021Comments are off for this post.

As consequências do abuso sexual

Abuso sexual não produz os mesmos efeitos em todas as pessoas. As crianças e adolescentes vitimizados podem reagir ou vivenciar a violência sexual de maneiras variadas. Assim, alguns expressarão o seu sofrimento de forma muito evidente, enquanto outros não o farão.

Dentre as consequências do abuso sexual, podemos apontar a possibilidade de danos a curto, médio e longo prazos nas mais diversas áreas da vida do sujeito. Trata-se de um evento que predispõe ao aparecimento de psicopatologias e de prejuízos nas esferas psicológica, social e afetiva. São alguns exemplos:

- Consequências físicas: gravidez; DSTs; dor, inchaço ou sangramento na região genital; hematomas ou lesões corporais, em razão do uso de força física; dentre outros.

- Consequências psicológicas e/ou psicossomáticas: mudanças de comportamentos ou vocabulário; agressividade; condutas sexuais inadequadas e/ou incompatíveis com a idade; dificuldades nos relacionamentos interpessoais; dificuldades escolares; distúrbios alimentares; distúrbios afetivos (apatia, depressão, desinteresse pelas brincadeiras, crises de choro, sentimento de culpa, vergonha, autodesvalorização, baixa autoestima); dificuldades de sono; uso de drogas; tentativas de suicídio; queixas psicossomáticas; frequentes fugas de casa; transtorno de estresse pós traumático, dentre outros.

Além disso, as consequências também podem variar de acordo com a idade da vítima, a duração do abuso, o grau de violência ou ameaça de violência empregada; o grau de proximidade entre o agressor e a vítima; resiliência; presença de apoio familiar e suporte emocional; consequências da revelação; garantia de proteção, etc. 

Uma vez que cada pessoa responde a estímulos de forma singular, a violência sexual não produz o mesmo resultado sobre todas as crianças e adolescentes submetidos a ela. Apesar das consequências negativas para o funcionamento psicológico, social, cognitivo e afetivo do sujeito, não existe uma “síndrome”, “transtorno” ou “sintoma” específico ou exclusivo relacionado a esse tipo de vivência. Do mesmo modo, existe também a possibilidade de vitimização com ausência de sintomas. 

Portanto, cada caso é um caso. O fundamental é que a criança ou adolescente encontre o apoio e ajuda necessários, de modo a evitar que as consequências dessa violência marquem cruelmente a sua vida no presente e no futuro.

Silvia Pereira Guimarães

3 de fevereiro de 2021Comments are off for this post.

Por que crianças abusadas demoram para revelar a violência?

É bastante comum que uma criança leve anos para contar que passou por algum episódio de violência sexual, isso quando não mantém esse segredo por toda a vida. Em razão dessa demora, alguns adultos se sentem revoltados, sem entender o porquê de ela não ter pedido ajuda antes. Tal situação surge da ideia equivocada de que é simples para a vítima falar sobre o abuso e buscar uma solução para seu problema.

Embora a violência sexual provoque muito sofrimento, na situação real, muitos fatores podem levar uma vítima a manter a violência em segredo. Na verdade, o contexto da maioria dos casos é bastante desfavorável para a revelação.

Em geral, as crianças não têm a menor ideia do que é o abuso sexual e não são orientadas sobre a possibilidade de abordagens inadequadas. Muitas delas não têm informações mínimas sobre o próprio corpo, nem consciência de que algumas partes são íntimas e ñão devem ser tocadas por outras pessoas, a não ser em situações pontuais, como em consultas ou em alguma atividade de higiene para a qual ainda precisem de ajuda. Por essa razão, muitos toques abusivos não são prontamente identificados pela criança, que só percebe a natureza do abuso quando este passa a atos eróticos mais complexos ou já está estabelecido como uma prática recorrente. Nesse ponto, pode ocorrer da vítima se sentir responsável ou culpada pelo abuso, considerando que permanecia próxima ao abusador até então. 

Precisamos saber que nem sempre uma criança tem confiança para contar sobre seus problemas para os pais, por medo de bronca ou castigo. Nessa lógica, recorrer à violência física ou a castigos rígidos como forma de educar os filhos, além de inapropriado, pode ser prejudicial à segurança deles. 

Outra dificuldade da criança para buscar ajuda é que, na maioria das vezes, o agressor é alguém com quem ela convive e que conta com a confiança da família dela. Isso cria um conflito entre o desejo de que a violência pare e as prováveis consequências da revelação. Entre a palavra dela e a do abusador, em quem irão acreditar? Será que ele vai ser preso? Nesse caso, como a família vai ficar? 

As ameaças comumente feitas pelos agressores também agem para manter o abuso em segredo. Alguns instigam na criança medos que já são esperados, como de que não irão acreditar nela, de que os pais vão ficar bravos e ela vai apanhar, de que a família vai passar necessidade, se ele for preso, ou de que a criança vai ter que sair de casa ou ir para um abrigo. Outros, são mais claramente violentos, prometendo que vão matar a criança ou pessoas próximas à ela. Por isso, é preciso que a vítima se sinta muito amparada e protegida pela família para que consiga superar o medo e buscar ajuda.

Para além das várias dificuldades que uma criança encontra antes de decidir revelar sobre o abuso sexual, são comuns os casos de vítimas que tentam buscar auxílio e não são compreendidas. No contato com as vítimas, no contexto da denúncia, é comum ouvirmos que já haviam tentado comunicar o problema antes, sem que nada tenha sido feito.

Possivelmente por isso, é frequente que relatos de abuso surjam no contexto escolar, muitas vezes motivados por alguma oportunidade propícia ou conteúdo correlato trabalhado em aula.

Considerando todo esse contexto, é fundamental dar às crianças elementos para que identifiquem o quanto antes situações sexualmente abusivas, além de condições para que consigam buscar ajuda. Ao mesmo tempo, tanto os pais, como os responsáveis e também os educadores devem compreender a dinâmica da violência sexual, saber identificar riscos e agir de forma adequada diante de situações suspeitas.

Juliana Borges Naves

27 de janeiro de 2021Comments are off for this post.

Afastando a vítima do agressor

Um dos cuidados mais essenciais ante à confirmação de um abuso sexual deve ser garantir que a vítima seja posta em segurança, a salvo de novos episódios de violência. O objetivo principal desse tipo de medida é o de resguardá-la, assegurando a devida atenção aos seus direitos básicos e impedindo que continue prejudicada quanto a seu bem-estar e desenvolvimento.

A literatura científica sinaliza que abusos que se repetem ao longo do tempo tendem a ser mais impactantes e desorganizadores para aquele que sofre a violência do que as situações que envolvem episódios isolados de vitimização. Além disso, à medida que os episódios se repetem, se tornam gradativamente piores, com condutas cada vez mais invasivas. Em razão disso, afastar a vítima do agressor pode ser algo necessário. 

Considerando a variabilidade dos casos de violência sexual, comumente esse afastamento vai ser sentido pela criança ou pelo adolescente como um alívio, especialmente quando a relação com o abusador é mais traumática. Em outras situações, principalmente nos casos que envolvem abusos intrafamiliares, o agressor pode ser uma figura de apego e referência para a vítima, sendo que o distanciamento em relação a ele deve ser bem analisado e conduzido para não representar um novo abalo emocional.

É nesse ponto que a rede de proteção assume um papel fundamental. É ela que, com profissionais capacitados, avalia o contexto da denúncia para evitar que injustiças sejam cometidas no processo, já que tais questões podem interferir irreversivelmente no vínculo entre a criança e a pessoa apontada como abusiva. A partir dessa verificação, cabe também aos órgãos desse sistema indicar o que é mais recomendável frente às circunstâncias postas, definir as estratégias protetivas mais pertinentes, orientar os familiares e promover apoio psicológico a todos os envolvidos.

Liliane Domingos Martins

20 de janeiro de 2021Comments are off for this post.

O mito da criança sedutora

Diante de uma notícia de abuso sexual de criança ou adolescente, não é raro surgirem comentários que apontam a vítima como sendo a responsável por aquele episódio abusivo em razão de ter “seduzido” ou “provocado” o adulto. Nesse sentido, alguns pontos precisam ser esclarecidos sobre esse assunto. 

Crianças e adolescentes estão em plena vivência de um longo processo de desenvolvimento da sexualidade. Nesse percurso, experimentam prazer sensorial em seu corpo, incluindo na região genital. Este prazer sexual está vinculado às descobertas do corpo e a se sentir bem com ele. A faculdade de sentir prazer é parte integrante da sexualidade infantil, contudo, ainda não existe uma maturidade, nem física nem psicológica, que possibilite interações sexuais como fazem os adultos. Essa imaturidade impede que crianças e adolescentes sejam considerados capazes de tomar decisões embasadas e responsáveis no campo da sexualidade.  

A crença de que a vítima seduziu e provocou o abuso muitas vezes é construída a partir de projeções dos próprios pensamentos sexuais do adulto na criança, atribuindo a ela estes conteúdos. Em outros casos, podem se tratar de distorções cognitivas, que são crenças disfuncionais e desadaptadas que podem estar relacionadas à visão que o indivíduo tem sobre as outras pessoas, sobre si mesmo, sobre o mundo etc. Tais distorções estão na base de pensamentos como: “a criança que provocou”, “ela que me fez fazer isso”, “ela gostou do abuso”. 

É preciso deixar claro que a responsabilidade de qualquer abuso sexual é sempre do adulto, ainda que uma criança, pré-adolescente ou adolescente demonstre ou declare que deseja ter algum tipo de contato sexual com ele. Além disso, caso uma situação como essa aconteça, um sinal de alerta deve ser ligado, pois pode indicar a existência de um abuso prévio. Uma criança vitimizada sexualmente pode agir com outros adultos de forma sedutora. Nesses casos, as suas relações interpessoais podem estar perturbadas, bem como sua capacidade de expressar afeto de uma forma não sexual. 

Em nenhuma hipótese o comportamento supostamente sedutor torna crianças e adolescentes responsáveis pelo comportamento do adulto de satisfação dos próprios desejos sexuais. Muitas vezes, por trás daquele comportamento interpretado como “sexual”, existe uma necessidade de cuidado emocional somada à imaturidade psíquica típica da idade. Portanto, cabe ao adulto estabelecer os limites apropriados no relacionamento com os mais jovens.

Silvia Pereira Guimarães

13 de janeiro de 2021Comments are off for this post.

A importância do livre relato

Muito se fala da necessidade de haver justiça, quando uma criança ou um adolescente passa por um abuso sexual. Apesar dessa condição, pouco se fala da responsabilidade que cada um de nós temos para garantir isso. 

No contexto da violência sexual, uma das coisas mais importantes é o livre relato por parte da vítima, ou seja, que ela tenha a possibilidade de se expressar livremente ao contar o que lhe aconteceu e que esta fala seja respeitada e preservada, a ponto de servir como elemento probatório válido no contexto judicial.

Na maior parte das vezes, a fala da vítima é a única prova que se tem da violência, pois o abuso em geral ocorre sem testemunhas e não deixa indícios físicos, até mesmo em casos com penetração vaginal ou anal. Nesse sentido, o relato da criança ou do adolescente é um elemento imprescindível para a responsabilização do agressor.

Nesse sentido, a falta de cuidado com a preservação deste relato, seja no ambiente doméstico, seja durante os atendimentos posteriores à denúncia, pode ser extremamente danosa. Muitas vezes, perguntas equivocadas ou observações feitas pelos entrevistadores interferem tanto no discurso da vítima que o invalidam. 

Quanto menor a criança, mais sugestionável ela é, ou seja, mais sujeita a modificar suas impressões e descrições a partir do que entende que o outro espera ouvir. Isso significa que uma criança pode oferecer informações diferentes do que daria espontaneamente conforme o modo como é questionada, seja pela família, seja por algum profissional.

Vivemos em uma cultura adultocêntrica, na qual as crianças são ensinadas que não devem questionar os adultos, pois eles tudo sabem. Em razão disso, a depender do modo como os adultos agem, as crianças respondem, o que, no que tange ao relato do abuso, pode fazê-las oferecer respostas falsas, que imaginam esperadas pelo interlocutor.

Para evitar esse risco, é preciso deixar que a criança descreva conforme ela consegue o que lhe aconteceu, sem perguntas excessivas e sem ceder ao desespero ou à curiosidade sobre o que realmente aconteceu.

Uma dica simples é usar perguntas abertas, que são as questões que não comportam respostas “sim” ou “não”. Esse tipo de pergunta predispõe o oferecimento de relatos mais livres e detalhados sobre o que aconteceu. Um exemplo de pergunta aberta é: O que aconteceu? É possível observar que esse tipo de pergunta permite que a criança fale livremente, seguindo sua própria necessidade de expressão. 

Se precisar ouvir uma criança ou um adolescente, assuma uma postura acolhedora e mantenha a calma, tentando controlar a expressão de seus sentimentos. Os pronomes “o quê”, “quem”, “quando” e “como” podem ajudar. 

Se você for um professor ou um familiar, tenha em mente que o papel de investigar não cabe a você. Tente perguntar o mínimo para entender o que houve e encaminhe a situação. Caso haja suspeita de abuso, denuncie.

Juliana Borges Naves

6 de janeiro de 2021Comments are off for this post.

Como conversar com uma criança quando existe uma suspeita de abuso?

O abuso sexual é um fenômeno silencioso e, na maioria das vezes, sem testemunhas. Além disso, comumente as crianças e adolescentes vítimas de um abuso demoram a relatar a violência que estão sofrendo. A confusão de sentimentos, a vergonha, a culpa, o medo e as ameaças contribuem para que o abuso seja mantido em segredo por muito tempo. 

Apesar disso, a violência sexual, muitas vezes, é um tipo de acontecimento que deixa pistas. A criança ou adolescente vítima pode “comunicar”, na maioria das vezes de forma indireta, que está vivendo uma situação de sofrimento. Isso acontece de diversas formas, sendo as alterações no padrão de comportamento ou de humor, uma delas. 

Para ilustrar como seriam essas alterações, há casos em que criança era comunicativa e desinibida, e se torna mais retraída e desconfiada; como também casos em que a criança tinha um bom desempenho escolar e apresenta uma queda brusca de aproveitamento, chora na escola sem motivo aparente e se torna pouco sociável com os coleguinhas; outro exemplo é a adolescente que se torna agressiva com os familiares, foge de casa com frequência, começa a usar drogas etc. 

Estes exemplos apontam que algo está acontecendo na vida da criança/adolescente, algo está lhe trazendo sofrimento. Não é possível deduzir que essa seja uma situação de abuso sexual, uma vez que não existem sintomas típicos e exclusivos desse tipo de violência. De todo modo, as alterações citadas sinalizam a existência de algum tipo de situação de estresse. 

Diante disso, uma orientação importante é focar no estabelecimento de uma relação de proximidade e confiança, para que a criança/adolescente se sinta segura para relatar o que está lhe causando sofrimento. O diálogo é a base para que o adulto esclareça aquilo que de fato está acontecendo. 

Lembre-se de evitar qualquer abordagem invasiva ou direta questionando um suposto abuso sexual. Perguntas como: “Tem alguém abusando de você?”, “Fulano está mexendo com você?” não devem ser feitas. Esse tipo de abordagem sugestiona a fala da criança, pode produzir relatos não autênticos, provocam sofrimento e constrangimento. Pressionar ou insistir para que a criança ou adolescente revele um suposto abuso sexual configura um tipo de violência psicológica que traz prejuízos e pode fazer com que ela se feche ainda mais. 

A melhor forma de falar com a criança/adolescente é dizer que tem observado mudanças de comportamentos e que você se preocupa com ela. Pergunte se há algo difícil lhe acontecendo, algo ruim, e mostre disposição para escutar o que será falado. Alguns exemplos de como perguntar para a criança são: “Tenho observado que você anda triste nos últimos tempos. Quer conversar um pouco sobre isso?”; “Tem algo ruim ou difícil acontecendo com você? Gostaria de falar sobre isso?”; “Se algo ruim estiver acontecendo com você, pode se abrir comigo, quero te ajudar”. Essas abordagens ilustrativas demonstram que você percebe que algo está acontecendo, sem induzir ou indicar alguma hipótese específica. 

É importante que o adulto demonstre carinho e cuidado, e coloque-se disponível para conversar. Além disso, se mostre como uma pessoa disposta a ouvir e ajudar, de modo que a própria criança/adolescente, no tempo dela e da forma que sentir confortável, poderá falar o que está lhe acontecendo. Esse relato pode envolver a existência de algum tipo de abuso sexual, como também pode ser sobre qualquer outra questão, dúvida ou conflito que esteja causando sofrimento ou preocupação. 

Muitas vezes o estabelecimento de uma relação de confiança e diálogo é suficiente para diminuir as dúvidas e afastar a hipótese de abuso sexual. Outras vezes, o incômodo pode permanecer e as perguntas continuarão sem respostas. Nesses casos, vale a pena procurar uma ajuda especializada. 

Silvia Pereira Guimarães