26 de maio de 2021Comments are off for this post.

O medo da falsa denúncia

Uma preocupação recorrente quando nos deparamos com uma suspeita de violência sexual é quanto à possibilidade de se tratar de um engano. Sabemos que o estupro é um crime grave e acusar alguém injustamente pode ser terrível. 

Diante desse risco, quando uma criança narra uma interação aparentemente sexual com um adulto, muita gente minimiza a situação, argumentando que deve ter havido algum equívoco. Isso é especialmente complicado porque a maior parte dos assédios vem de parentes ou de amigos da família. Nesse contexto, frente ao relato da criança, é comum que muitas perguntas sujam, além de vários argumentos:

  • E se ela estiver mentindo? 
  • E se for uma fantasia da cabeça dela?
  • Não é possível que isso tenha acontecido, pois a criança vivia perto dessa pessoa, não tinha raiva nem nada…
  • Mas uma pessoa tão séria e trabalhadora, que eu conheço a vida inteira... não ia jamais fazer algo assim...
  • Se o abuso tivesse mesmo acontecido, alguém teria visto, eles nunca ficavam sozinhos…

Então, dentre a angústia em ter que lidar com o abuso e a dificuldade de imaginar que há um agressor dentro da família, o cuidado com a vítima pode ficar em segundo plano.

Nesse ponto, cabe esclarecer que, embora haja denúncias falsas, essa não é a situação mais comum. Mesmo que crianças tenham capacidade de mentir ou fantasiar, o habitual é que as histórias inventadas por elas tenham como repertório vivências corriqueiras da infância. Mentir que já tomou banho, que escovou os dentes, já terminou a tarefa de casa ou que foi o irmão quem rabiscou a parede é muito diferente de falar que algum adulto tocou em seus genitais. Relatos de cenas sexuais não são típicos na infância e devem sempre ser tomados como um sinal de alerta. 

Conforme a literatura especializada, de 1,5 a 6% das denúncias são inverídicas, ou seja , a grande maioria dos relatos são verdadeiros. O que vemos, na prática, é que é muito mais fácil uma criança mentir negando ou minimizando a violência sexual pela qual passou do que fazer uma falsa alegação de abuso.

É preciso que se saiba que a tarefa de responder se houve ou não houve violência sexual não é da família, nem da escola, nem da rede de apoio daquela criança. Para isso, existe toda uma estrutura de investigação e justiça, com profissionais capacitados.

Na dúvida, a denúncia é o único jeito de entender o que houve. Denunciar não é culpar ninguém. É sim dar a chance para que a situação seja esclarecida, o que é mais justo para ambos os lados.

Juliana Borges Naves

19 de maio de 2021Comments are off for this post.

A Revelação como Prova

O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um tipo de crime que tende a se dar sem testemunhas e sem deixar marcas físicas que comprovem a violência. Assim, como é grande o desafio de constatar sua ocorrência, a palavra da vítima tem assumido destaque e tem sido considerada como elemento de prova. Trata-se de uma tendência internacional e que também vem sendo reforçada em nosso país.

Para que isso seja possível, uma recomendação importante é a de preservar o conteúdo da fala da criança/adolescente vitimizada, assim como acontece com as evidências de outros delitos. Em casos de assassinato, por exemplo, o ambiente é isolado, evitando adulterações da cena e maximizando a possibilidade de que se possa entender a dinâmica dos fatos que culminaram no homicídio, sua autoria, etc. Do mesmo modo que se faz nessas situações, portanto, é preciso pensar que, se o relato da vítima pode ser usado como prova, quem o acolhe é responsável por resguardá-lo.

Para resguardar uma revelação de abuso, a pessoa que escuta a vítima deve atentar para três pontos principais: ter cautela para não revitimizar a criança/adolescente, buscar ampliar o número de informações colhidas por meio do livre relato e fazer o registro de absolutamente tudo o que aconteceu na sessão.

Sobre o primeiro desses pontos, a ideia é garantir que a vítima receba o melhor acolhimento possível, eliminando seu confronto com pressões, preconceitos ou mitos sobre a violência. Lembrar a experiência abusiva e ter que falar sobre o assunto costuma ser algo bastante difícil, de forma que é imprescindível que aquele que se dispõe a ouvir a criança ou o adolescente seja cuidadoso quanto ao que diz nesse momento. Não faz sentido questionar a vítima sobre como ela deveria ter agido, a roupa que usava, o porquê de ter se comportado de determinada forma ou sobre sua incapacidade de reagir. O crime é de responsabilidade do agressor e tais indagações fazem parecer que o erro foi dela de alguma forma, implicando em sua menor disponibilidade para fazer o relato e aumentando seus sentimentos de ansiedade e de culpa.

O segundo ponto envolve o esforço por estimular a vítima a falar ao máximo sobre o que lhe aconteceu, mas de uma forma espontânea e livre. O papel do adulto que recebe o relato não é de investigar a situação e, sendo assim, ele não deve fazer perguntas diretivas à criança/adolescente. Seu papel é de acolher e entender o problema para, então, encaminhar aquele que passou pelo abuso aos serviços de atendimento mais adequados. Para tal, esse adulto pode incentivar a vítima a apresentar mais dados se valendo de expressões exploratórias ou de indagações que são classificadas como abertas, por exemplo: “me conta mais sobre isso”, “me conta tudo sobre isso”, “o que mais aconteceu?”, “e depois disso, o que houve?”, “como foi que essa situação aconteceu?”, etc.

O terceiro ponto desse processo exige que a pessoa que ouviu o relato faça o registro de todas as informações colhidas e observadas naquele momento. Devem ser anotados todos os dados oferecidos espontaneamente pela criança/adolescente como suas descrições da cena abusiva, sobre como foi abordada, em que local, data ou momento do dia, o que fazia, a roupa que usava, o diálogo travado entre o agressor e ela, suas sensações físicas, seus pensamentos e sentimentos naquela hora, sobre como reagiu, se sofreu ameaças, se recebeu presentes, etc. Absolutamente tudo o que foi dito pela vítima deve ser devidamente listado e com as mesmas palavras que ela utilizou. Além disso, é importante escrever também sobre como a criança se apresentou, as emoções que exteriorizou e sobre qualquer interferência ocorrida enquanto a escuta se dava. 

Essas medidas aqui apontadas são especialmente importantes na ocasião em que a vítima oferece seu primeiro relato sobre o abuso. Aquilo que a criança ou adolescente traz como parte da revelação, se acolhido por meio desses procedimentos, pode aumentar a confiança dela com as etapas subsequentes e minimizar a necessidade de que ela seja ouvida de forma repetida. Cabe a cada um ficar alerta sobre o assunto e se preparar com essas dicas para atuar sobre as questões indicadas.

Liliane Domingos Martins

12 de maio de 2021Comments are off for this post.

18 de maio – O Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes

O dia 18 de maio foi instituído oficialmente como o Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Essa é uma data muito importante, pois vários órgãos se unem e se mobilizam para chamar a atenção para esse problema e para promover a reflexão em toda a sociedade sobre as formas de combatê-lo. 

A escolha do dia 18 de maio não se deu por acaso. Essa data marcou a morte da menina Araceli Cabrera Sánchez Crespo, em 1973, na cidade de Vitória-ES. A criança foi sequestrada, violentada sexualmente e assassinada quando tinha apenas 8 anos de idade. Os suspeitos, pessoas influentes da sociedade naquela época, foram absolvidos e ninguém pagou por esse crime, de forma que não houve justiça para o ocorrido. Apesar de impactante, o “caso Araceli” é apenas um dentre os inúmeros episódios de vitimização de crianças e adolescentes em nosso país, de forma que ele se tornou emblemático para lembrar os outros que o sucederam.

As estatísticas atuais nos mostram que não se trata de uma problemática do passado ou de uma questão menos relevante com o passar do tempo. Muito pelo contrário. Os dados oficiais indicam que o número de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no Brasil continuam extremanente elevados. Além disso, a pandemia aponta para um cenário que tornou o quadro mais complicado, ainda que não se tenha o exato dimensionamento do impacto dos abusos no país em função do isolamento e da crise social. 

Segundo os dados mais recentes do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, no primeiro semestre de 2020, durante o início da pandemia do novo coronavirus, caíram os registros em delegacia de casos envolvendo violência doméstica e violência contra as mulheres. Por outro lado, houve um aumento no número de feminicídios e homicídios dolosos contra mulheres, se comparado com o mesmo período do ano anterior. Essa diferença nos dados sinaliza que, muito provavelmente, houve uma diminuição no número de denúncias oficiais de casos envolvendo violência doméstica, mas que isso não reflete uma diminuição da violência. 

Conforme o texto do Anuário Brasileiro, pode ter havido um aumento na subnotificação de alguns tipos de crimes, tendo em vista que o distanciamento social impõe dificuldades para que vítimas de violência doméstica denunciem esse problema. Sendo assim, observou-se queda nos registros dos crimes que dependem, principalmente, da presença física da vítima nas delegacias, em especial os casos de estupro, que demandam também exame pericial.

Especificamente sobre os números relacionados à violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, os dados completos mais recentes constam de 2019. Sabemos que esse tipo de crime é extremamente subnotificado, em razão das diversas complexidades que o envolvem (na maioria das vezes acontece dentro do contexto familiar; vítimas de pouca idade; comumente sem indícios físicos, etc.). Ainda assim, as estatísticas nacionais são assustadoras: em 2019 foram registrados 66.348 vítimas de estupro e estupro de vulnerável, o que corresponde a 1 estupro a cada 8 minutos em nosso país. Desse número, 58,8% das vítimas tinham no máximo 13 anos, o que corresponde a 39.012 casos registrados. Do total de vítimas, 85,7% eram do sexo feminino, o que confirma que a violência sexual continua se dando principalmente contra crianças e adolescentes do sexo feminino. 

Diante desse quadro, o cenário da pandemia parece impor um desafio ainda maior no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e todas as ações de conscientização sobre essas questões são mais pertinentes do que nunca.

O mês de maio é, portanto, um momento de mobilização, de unir esforços, o que não nos exime de continuarmos a nossa luta em todos os demais dias do ano. A violência sexual é um tipo de crime bárbaro, impactante, e de difícil enfrentamento. Por isso, todos: pais, professores, profissionais de saúde, profissionais da assistência social, profissionais do direito, gestores públicos, profissionais da rede de proteção e a sociedade de modo geral, estão convidados a se unirem a nós nessa causa. 

Silvia Pereira Guimarães

5 de maio de 2021Comments are off for this post.

Entre a culpa e a responsabilidade

É muito recorrente que vítimas de abuso sexual relatem sentir culpa pela violência que viveram. Esse sentimento, tão presente e forte, pode até mesmo impedir que muitas delas tomem coragem para colocar limites no abuso ou para revelarem a alguém sobre essa situação. 

Quando falamos em culpa, devemos levar em conta que ela compreende dois aspectos. Uma coisa é a culpa no sentido legal do termo, que se refere ao componente de responsabilidade pela agressão. Outra coisa é a culpa no sentido psicológico, expressa pelo afeto que surge a partir da interpretação particular da vítima sobre a experiência abusiva.

Feita essa diferenciação, cabe ressaltar que, em todas as situações de assédio, a culpa, no seu sentido legal, é sempre do agressor. Isso quer dizer que, em nenhuma hipótese, a vítima pode ser responsabilizada pela violência que sofreu. Isso porque a culpa, enquanto ligada à responsabilidade pela violência, é obviamente de quem comete o ato.

Infelizmente, isso nem sempre fica claro e é comum que quem sofreu a agressão seja responsabilizado pela própria vitimização, em razão de seus hábitos, comportamentos ou do modo de se vestir. Se soma a esse erro a ideia equivocada de que a vítima pode ter consentido com o abuso de alguma forma, como nos casos em que não conseguiu esboçar reação. 

No que se refere à culpa que muitas vítimas experimentam, entende-se que depende de aspectos individuais e pode se originar por inúmeras causas. Embora não tenha responsabilidade legal pelo abuso, a vítima pode sentir-se culpada, por exemplo, por manter afeto ou proximidade com o agressor. Pode ainda sentir-se mal por não ter percebido o caráter perverso da interação a tempo de se proteger ou por ter tido alguma sensação fisicamente agradável durante o abuso, a despeito do desconforto emocional que a situação lhe causou.

Vemos que, em muitos casos, esse tipo de culpa nasce da ideia de que seria possível fazer as coisas de forma totalmente diferente. Olhando em retrospectiva, a pessoa se imagina capaz de estar mais alerta, de reagir de outro modo e de se autoproteger. É preciso entender que tais hipóteses partem de uma análise posterior, feita com elementos que a pessoa não tinha antes da agressão e, nesse sentido, constituem uma fantasia que não seria viável na prática. 

Além disso, nem sempre o abuso envolve violência física e muitos agressores investem seus recursos em um longo processo de aliciamento, a partir do qual identificam os pontos fracos de seu alvo, bem como as condições mais favoráveis para agir. Diante disso, podem se mostrar extremamente gentis e amáveis, carinhosos e companheiros, atitude que cria um vínculo de confiança, diminui a resistência da vítima e confunde sua percepção, possibilitando a conclusão do ato abusivo.

É importante saber que a culpa sentida pela vítima não só amplifica seu sofrimento, mas também dificulta a elaboração do trauma gerado pela experiência abusiva. Esse sentimento merece o cuidado profissional e pode ser devidamente trabalhado dentro de um processo psicoterapêutico. 

No que diz respeito à culpa por parte do agressor, cabe a devida punição legal, a partir da qual ele pode quitar sua dívida com a sociedade.

Juliana Borges Naves

28 de abril de 2021Comments are off for this post.

Quando a vítima paralisa e não reage ao abuso

Em denúncias de violência sexual, é comum que as vítimas sejam questionadas sobre as razões porque não apresentaram reação contra a aproximação indevida do agressor. Mesmo em casos de crianças e adolescentes, isso também acontece. Os mais novos são confrontados sobre as razões porque não correram, gritaram ou chamaram um dos pais, como se reagir aos abusos fosse fácil e esperado.

Sim, é verdade que boa parte daqueles que são expostos a essa ameaça tentam explicitar sua oposição ao ato, empurrando o agressor ou dizendo “NÃO”, por exemplo. Ensinar as crianças e adolescentes a reagirem nesses casos é importante e algo que até já discutimos por aqui. Mesmo assim, a literatura científica aponta que é também bastante frequente o número de pessoas que paralisa diante da sensação de medo intenso, ou seja, que ficam completamente incapacitadas de esboçar qualquer resposta à violência. 

Nos estudos da área, esse fenômeno é chamado de “imobilidade tônica”. Trata-se de um mecanismo biológico e evolutivo, que acompanha os seres humanos desde tempos remotos, quando, às vezes, era essencial ficar muito quieto para evitar o ataque de um predador. Como resquício disso, ainda atualmente é usual que as pessoas congelem em contextos aterrorizantes, como em casos de estupro. De acordo com algumas pesquisas, esse tipo de situação é extremamente traumática e pode ter impacto psicológico semelhante ao de vivenciar uma guerra. Nessa condição de desorganização emocional tão forte, como explicado, a vítima pode entrar em pânico e, instintivamente, deixar de oferecer resistência ao seu algoz.

A grande questão aqui é que a imobilidade tônica não significa que a vítima foi passiva quanto ao ato abusivo ou que consentiu com ele. É um equívoco tratar o problema dessa forma. A culpa por não ter conseguido evidenciar sua contrariedade com a situação já tende a ser pesada demais para essas pessoas e é preciso que sejam acolhidas quanto a essa dor. Confrontá-la não é útil nesses casos e é revitimizante, já que quem faz esse tipo de pressão se mostra ignorante quanto ao resultado de várias pesquisas sobre a naturalidade dos episódios de paralisia em eventos traumáticos.

Liliane Domingos Martins

21 de abril de 2021Comments are off for this post.

Como estabelecer uma relação de confiança com meu filho?

Por muitas vezes falamos aqui sobre a importância do estabelecimento de uma relação de confiança junto à criança como uma das mais importantes vias para a prevenção do abuso sexual infantil.

Mas, como construir uma relação de confiança com meu filho?

Essa é uma pergunta simultaneamente preciosa e difícil. 

“Preciosa” porque trata-se de um desejo legítimo de qualquer adulto que conhece os desafios que envolvem a prevenção do abuso sexual e entende a importância do estabelecimento de uma relação que transmita segurança e confiança para a criança.  

Quando há esse tipo de relação, a criança se sente segura para dizer de forma franca o que está lhe incomodando, inclusive sobre temas da sexualidade, sabendo que aquele conteúdo relatado será escutado com atenção e respeito, não sendo castigado ou reprimido. Isso possibilita ao adulto identificar as questões que envolvem angústia e sofrimento, e abre a possibilidade de se conversar sobre isso. Nesse sentido, aproximações inadequadas, abusivas ou com conotação sexual poderão ser identificadas precocemente, possibilitando a tomada de providências. 

Além de preciosa, a pergunta é também “difícil” porque não existe uma resposta pronta que a contemple. A formação de uma relação segura e íntima entre um adulto (pode ser a mãe, o pai, uma avó etc.) e uma criança envolve uma série de elementos subjetivos e íntimos que fogem a qualquer receita preestabelecida. 

As dificuldades ou facilidades encontradas pelo adulto na construção desse tipo de vínculo esbarram em fatores dos mais diversos, dentre eles a própria história de vida do adulto e da criança e as formas como se deram suas relações, o lugar da criança na vida desse adulto, seus próprios traumas e dificuldades pessoais, características de personalidade de ambos, etc. Assim, a forma como um adulto vai se relacionar com a criança que está sob seus cuidados será sempre única e particular, não sendo possível enquadrar em uma receita universal. 

Apesar disso, é possível pensar noções gerais que fundamentam a construção desse laço de proximidade. A primeira delas é que esse processo demanda tempo, por vezes uma vida inteira, portanto, não pode ser elaborado de um dia para o outro.  

Trata-se de uma construção gradual, lenta, por meio do diálogo cotidiano e das pequenas interações, onde o adulto se mostra aberto e disponível. Isso significa que, ainda que a criança tenha como assunto coisas banais do dia a dia, elementos de fantasia ou do seu brincar, cabe ao adulto escutar, se interessar efetivamente pelo que está sendo relatado. Ouvir não é o mesmo que conversar enquanto mexe no telefone celular ou cozinha. Trata-se de reservar momentos de troca, interação e, assim, maior aproximação. 

Além disso, cabe ao adulto procurar esses diálogos, construir o hábito de perguntar sobre o cotidiano da criança, como foi seu dia, o que ela fez ou como está se sentindo. Contudo, não como quem cumpre os itens de um questionário, mas como alguém que se interessa verdadeiramente pelas mini aventuras da vida daquela criança. 

Aqui, vale lembrar que é fundamental que o adulto adote uma postura de sincero respeito em relação ao conteúdo que lhe é apresentado. Isso significa não julgar ou minimizar sentimentos, assim como não ridicularizar o que está sendo dito. É importante que a criança sinta que o que ela diz é relevante, uma vez que isso é relevante para uma boa relação. 

Eventualmente, o adulto pode também compartilhar algum conteúdo seu, por exemplo, falar de forma franca como está se sentindo naquele dia ou em relação a determinada questão. Trata-se de uma postura que aproxima, que o desloca um pouco da posição hierarquicamente superior, e o traz para um contexto comum e mais próximo da criança. 

Por fim, vale ao adulto sinalizar verbalmente para a criança que ela pode confiar nele e lhe procurar sempre que sentir necessidade, pois ele estará aberto para escutar e ajudar no que for preciso. Ainda que essa mensagem esteja sendo transmitida ao longo do tempo nos comportamentos cotidianos, a verbalização dessa disponibilidade auxilia no entendimento por parte da criança. 

Silvia Pereira Guimarães

14 de abril de 2021Comments are off for this post.

Violência Institucional

Sempre falamos sobre a violência sexual, do quanto ela é frequente e de como pode ser traumática. Entretanto, existe outro tipo de violência à qual as vítimas de abuso estão sujeitas: a violência institucional. 

Violência institucional, também conhecida por revitimização ou vitimização secundária, compreende o sofrimento imposto à vítima a partir dos encaminhamentos e procedimentos relativos à formalização da denúncia. Acontece por meio de abordagens inapropriadas que partem de alguns profissionais que atendem o caso, seja no sistema de saúde, de proteção ou de justiça.

Antes de tudo, precisamos ter em mente o quanto é custoso para alguém que sofreu um abuso sexual tratar desse assunto. Em geral, esse tipo de violência provoca muita angústia, além de sentimentos de vergonha, culpa e medo, o que faz da própria revelação um passo difícil a ser tomado. 

Para darmos uma dimensão bem ínfima sobre o contexto que a vítima encontra, imagine que alguém desconhecido te peça para relatar algo de sua vida sexual, publicamente e com detalhes, principalmente se for um momento sexual desagradável ou constrangedor. Descrever onde estava, o que aconteceu, o que o outro fez, como você se sentiu, enquanto vai gravando ou anotando tudo o que você disser. Constrangedor? Suponha então, se tivesse que narrar uma situação de violência mesmo, de alguém que te tocou de uma forma invasiva ou violou seu corpo.

É fundamental que os profissionais que atendem vítimas de violência sexual tenham formação adequada e específica sobre esse assunto. Como se trata de um problema a ser trabalhado em rede, seja no âmbito da proteção da vítima, seja na via da responsabilização do agressor, cada qual deve estar ciente do seu papel dentro do sistema e executá-lo de maneira eficiente e acolhedora. Para isso, tanto profissionais da rede de saúde, como enfermeiros e médicos, quanto profissionais da rede de atenção e proteção, sejam conselheiros tutelares ou profissionais das equipes multidisciplinares de órgãos como CREAS e CRAS, devem buscar conhecimento científico sobre o fenômeno do abuso sexual. Importante também é a adequada formação dos educadores, a quem muitas crianças e adolescentes oferecem os primeiros relatos sobre a violência que sofreram.

Para evitar a revitimização, é preciso que cada profissional compreenda as possibilidade e limites de sua atuação, abordando as possíveis vítimas com práticas adequadas, respeitosas e efetivas. 

Cabe ressaltar que a violência institucional pode ser mais nociva e traumática que a própria violência sexual. No que se refere ao problema do abuso, muitos dos atos de revitimização partem de abordagem inadequadas e enviesadas pelos preconceitos dos profissionais que atendem as vítimas. Nesse sentido, faz-se imprescindível distinguir as próprias opiniões, bem como o que circula no senso comum, do conhecimento real e científico necessário na atuação junto aos casos concretos de abuso. 

Juliana Borges Naves

7 de abril de 2021Comments are off for this post.

Abusos Disfarçados: a camuflagem da violência em ações de carinho, brincadeira, cuidado ou como acidentes

O abuso sexual de crianças e adolescentes nem sempre envolve o emprego de condutas agressivas. Em realidade, na maior parte dos casos, o ofensor aborda a vítima como se estivesse fazendo uma brincadeira, um carinho, auxiliando com algum cuidado de higiene ou como se o ato fosse um mero acidente.  

O abuso disfarçado de brincadeira pode se dar, por exemplo, quando o agressor faz cócegas na criança, mas aproveita para tocar nas partes íntimas dela; ou quando desfruta do prazer da fricção genital que a vítima faz quando brinca de “cavalinho” em seu colo. Também há aqueles casos em que “o tio” coloca balas ou brinquedos dentro da roupa da vítima e, ao procurar o objeto, passa a mão pelo corpo dela. 

Em outras situações, o abuso é empreendido pelo agressor como se fosse uma demonstração de afeto. Somos acostumados a expressar carinho por meio de toques como o beijo e o abraço, que são bastante agradáveis. Especialmente no caso de crianças mais novas, porém, pode ser difícil diferenciar esse tipo de carícia de, por exemplo, um beijo dado maliciosamente em seu órgão genital. Para elas, nenhuma parte do corpo é sexualizada e, tudo o que percebem, costuma ser a sensação gostosa que aquele contato lhe provoca.

Há ainda os casos de violência sexual em que o abusador finge estar prestando um cuidado de higiene à vítima enquanto, na verdade, explora o corpo dela. São comuns as queixas sobre pais abusivos que tocam o corpo de seus filhos de maneira exagerada durante o banho e que se justificam na necessidade de limpeza para manipular a vagina e o ânus de suas crianças.

No mais, o ato abusivo pode também ser realizado de modo a parecer um acidente ou acaso, um contato físico indevido que o agressor diz ter ocorrido “sem querer”. Isso se reflete, por exemplo, em ocasiões nas quais o adulto passa em um lugar apertado procurando esfregar seu corpo contra o da criança ou finge cair e buscar equilíbrio na vítima, aproveitando-se para tocar em seus seios.

Todas essas circunstâncias são implementadas pelo agressor de um jeito que suas más intenções não fiquem evidentes e pareçam aproximações inocentes. Da forma como fazem, fica mais complicado para as crianças e adolescentes entenderem que aquele contato é inapropriado, o que torna improvável qualquer reação ou relato por parte delas. Mesmo para outros adultos, pode haver alguma confusão para compreender que aquele conhecido que brinca e auxilia com os pequenos da casa não oferece ajuda genuína, mas procura tão somente oportunidades de abuso. 

Para todos aqueles que estão dedicados a saber mais sobre como ocorre a violência sexual contra crianças e adolescentes é preciso ter em mente que o processo abusivo pode ser sutil como descrevemos. Estando consciente sobre esse risco, você fica mais preparado para distinguir quando a aproximação de outros adultos é amigável em comparação a outras interações que envolvem manipulação e podem ser prejudiciais aos seus filhos.  

Liliane Domingos Martins

31 de março de 2021Comments are off for this post.

A sexualidade infantil

O tema “sexualidade infantil” é considerado um tabu em nossa sociedade, o que torna esse assunto algo difícil de ser abordado e conversado abertamente. De modo geral, os pais também trazem consigo uma noção de sexualidade como sendo relacionado a algo proibido, constrangedor, sujo, cheio de vergonha. Tal noção está ligada à educação que eles próprios receberam de seus progenitores e que, gradativamente, vão repassando aos filhos. Se qualquer questão relacionada ao corpo ou à nudez da criança gera uma reação de repressão ou excessiva vergonha, a criança vai internalizando essas noções e associando a sexualidade a algo que não se fala, que se esconde, algo negativo etc. 

Nesse mesmo sentido, quando os pais têm uma visão mais natural da sexualidade e do corpo, transmitem essa mesma concepção para seus filhos. Isso possibilita que a criança construa uma melhor relação com o próprio corpo e com a sexualidade, o que, em um sentido mais amplo, auxilia na prevenção de abusos. 

Quando a sexualidade é tratada dentro da família como um dos aspectos naturais da vida, a criança se sente livre e segura para perguntar aos pais aquilo que tem dúvida e os pais se sentem confiantes para conversar e orientar de forma adequada com seus filhos. Dentre essas orientações, estão aquelas relacionadas à consentimento, limites do próprio corpo, os nomes das partes íntimas, toques apropriados e toques inapropriados, reconhecimento de sensação de desconforto etc. 

É preciso entender que a sexualidade infantil é muito diferente da sexualidade adulta. Para a criança, os órgãos genitais não são o centro do prazer sexual como acontece com os adultos. Nos primeiros anos de vida, a criança está descobrindo o próprio corpo, a funcionalidade de cada parte e as sensações relacionadas a elas. Assim, a criança explora seu corpo, corre, rodopia, percebe que sente cócegas em algumas partes e sensações boas em outras. Para a criança, os genitais não são uma zona sexual ou erótica, essa concepção ainda não foi construída. 

Portanto, quando falamos de sexualidade infantil, estamos tratando de uma concepção muito mais ampla, que envolve as experiências sensoriais e corporais como um todo; a forma como percebemos e nos sentimos em relação ao próprio corpo; tudo o que se refere a ser homem e ser mulher; a forma como nos relacionamos com as pessoas que gostamos; o desenvolvimento e as mudanças corporais; e a reprodução humana.  

As crianças são naturalmente curiosas e expressam curiosidade também pelas questões da sexualidade, assim como fazem em diversas áreas da vida. Cabe aos pais ou responsáveis influenciá-las de forma adequada para a construção de uma sexualidade saudável. Para isso, é importante orientar os pequenos sem envergonhá-los ou repreendê-los por estarem fazendo uma pergunta. Crianças precisam ser ensinadas de forma respeitosa e em linguagem adequada, sem que se sintam culpadas por uma curiosidade ou exploração sexual normal.  

Uma boa forma de fazer isso é internalizando uma concepção geral de sexualidade infantil como algo natural da vida, obtendo informações sobre o que é esperado em cada etapa do desenvolvimento e conhecendo os comportamentos sexuais típicos, ou seja, considerados “normais” ou comuns à maioria das crianças. Essa postura auxilia os pais a lidarem com a sexualidade dos filhos de uma forma mais tranquila, assumindo posturas mais saudáveis e efetivamente protetivas. 

Silvia Pereira Guimarães

24 de março de 2021Comments are off for this post.

Criança mente sobre o abuso?

Essa pergunta é muito comum, a tal ponto que o argumento de que o relato não passa de uma fantasia é frequentemente usado pelos advogados de defesa no âmbito jurídico. Nesse contexto, a incapacidade da vítima para apresentar um relato cronologicamente ordenado e detalhado sobre a vitimização é encarada por advogados e magistrados como um indício de que ela estaria mentindo ou fantasiando sobre a situação abusiva.

Tal entendimento parte do desconhecimento acerca de características fundamentais e típicas da infância, bem como das etapas de desenvolvimento do processo cognitivo e da aquisição da memória. Em razão disso, muitos adultos esperam que crianças tenham capacidades similares às suas, de forma que incoerências e incongruências são tomadas por indicativos de falta de veracidade.

No que se refere às habilidades da infância, entre 4 e 5 anos de idade, uma criança já é capaz de distinguir verdade de mentira, como também de mentir intencionalmente para, por exemplo, fugir de um castigo, obter recompensa, agradar alguém ou proteger figura significativa. 

Já a capacidade de imaginar, de lançar mão de ideias fantasiosas para interpretar ou relatar algum acontecimento, é bastante comum e recorrente na infância. A imaginação e o jogo simbólico são processos normais e essenciais para o desenvolvimento integrado das crianças e possibilita que elas internalizem situações do dia a dia ou elaborem vivências traumáticas. É por meio da brincadeira e da imaginação que uma criança passa da posição de objeto, que deve obediência aos pais, professores, irmãos ou a alguma outra criança, para o lugar de quem manda, de quem sabe, de quem determina as regras. É brincando que a criança pode mudar de papel e se distanciar temporariamente da condição de dependência e impotência que ela experimenta em diversos momentos. 

Dito isso, nos cabe fazer a mea culpa. Adultos também mentem, e muito. Pode-se dizer, considerando as estatísticas, que mentem bem mais que as crianças. Ademais, também fantasiam. Fazem planos diante de um jogo da mega sena, ensaiam conversas antes de um encontro e repassam inúmeras respostas que não deram quando confrontados, por vezes em voz alta. Nesse sentido, pedem das crianças a maturidade e coerência que nem mesmo têm.

Mas, voltando à pergunta inicial: Crianças mentem que foram abusadas?

Embora fantasiem, crianças não vivem em um mundo de fantasia e, por volta de três anos e meio, conseguem distinguir fatos concretos da imaginação. Além disso, costumam fantasiar com elementos que lhes são apresentados. Por conta disso, as brincadeiras giram em torno de situações habituais, de fatos que aconteceram na família ou de temas movidos por histórias imaginárias: personagens de livros, desenhos ou jogos. Considerando que cenas eróticas não fazem parte de vivências corriqueiras na infância, seria bastante atípico que uma criança relatasse uma situação sexualmente abusiva a partir da própria criatividade. Ainda que sejam capazes de fantasiar, a maioria das crianças não possui conhecimento ou percepção suficientes para ter o que são, em essência, fantasias sexuais adultas.

Aqui, cabe a ressalva de que uma criança pode ter contato com cenas eróticas de modo incidental, pela internet ou manipulando o celular dos responsáveis, por exemplo. Sendo assim, não necessariamente o relato de uma situação aparentemente sexual é produto do assédio de algum adulto. Vale esclarecer, entretanto, que expor intencionalmente uma criança ou adolescente a uma cena de conteúdo erótico, seja pessoalmente, seja em vídeo, configura sim violência sexual.

Sobre a mentira, é difícil entender que tipo de motivação levaria uma criança a inventar uma acusação de abuso contra alguém. Raramente uma criança mente sobre isso, a menos que esteja sob influência de um terceiro que visa algum benefício com a denúncia. Mesmo assim, quando consideramos o contexto de litígio e de divórcio, tem-se que apenas 6% das denúncias de violência sexual são inverídicas.

Nesse sentido, é mais comum uma criança usar a capacidade de mentir para encobrir uma violência que aconteceu com ela, seja por ameaças, por receio das consequências do relato ou pela necessidade de proteger um agressor com quem tem laços afetivos.

Juliana Borges Naves